Joseph de Maistre e a Defesa dos Jesuítas na Rússia

Joseph de Maistre (1753-1821), pensador contrarrevolucionário e ultramontanista

Conde Joseph-Marie de Maistre (Saboia, 1 de abril de 1753 – Turim, 26 de fevereiro de 1821)
Carl Christian Vogel; 26 June 1788 – 4 March 1868)
1810

No domínio da religião, Joseph de Maistre foi um dos proponentes mais influentes do pensamento contrarrevolucionário ultramontanista no período imediatamente seguinte à Revolução Francesa. Este pensador francês é autor da célebre frase «Toute nation a le gouvernement qu’elle mérite» (“Toda a nação tem o governo que merece”), com a qual defendia a autoridade estabelecida anterior à Revolução francesa em todos os domínios: no Estado, enaltecendo a monarquia; na Igreja, enaltecendo os privilégios do papado; e no mundo, glorificando a providência divina.

A reflexão: «Toute nation a le gouvernement qu’elle mérite» (“Toda a nação tem o governo que merece”), ideia que exprimiu numa carta de 1811, reflete de forma sintética o seu pensamento filosófico e político. Apesar da sua dureza, o axioma transcende rótulos e épocas: pode ser assumido por qualquer corrente, já que põe em causa a responsabilidade coletiva de um povo pelo regime sob o qual vive, seja ele justo ou injusto, em qualquer tempo e lugar.

A sua reação à Revolução e ao Iluminismo encontra-se caracterizada, segundo o historiador José Miguel Nanni Soares, “por uma excêntrica interação entre ‘jesuitismo’, iluminismo e filosofia das Luzes”. Esta aparente contradição revela a complexidade do pensamento de Maistre e a forma como conjugou diferentes correntes intelectuais para fundamentar as suas posições políticas e religiosas.

Joseph de Maistre era igualmente um vigoroso defensor da restauração do Reino da França, que considerava uma instituição legitimada por uma inspiração divina, intrinsecamente ligada à ordem natural do mundo. Sustentava que só o retorno à velha monarquia, sustentada por valores históricos e religiosos, poderia devolver estabilidade à nação após o abalo provocado pela Revolução Francesa.

Para além do seu ultramontanismo, Maistre argumentava de modo enfático a favor da supremacia do Papa não apenas em assuntos religiosos, mas também no campo político, advogando que a autoridade pontifícia representava um último baluarte contra o caos revolucionário. Segundo o seu entendimento, apenas regimes fundados na constituição cristã — enraizada nos costumes, instituições e tradições das principais sociedades europeias, especialmente nas monarquias católicas — seriam capazes de evitar as convulsões e violências que acompanham a implementação de projetos racionalistas.

A defesa entusiasta da autoridade estabelecida, que a revolução procurava destruir, expressava-se de modo abrangente: no Estado, ao promover a monarquia; na Igreja, ao valorizar os privilégios do papado; e, em última análise, no mundo, ao exaltar a providência divina como estrutural à ordem social e política

O apoio aos jesuítas na Rússia

Durante o período da supressão da Companhia de Jesus na Europa, os jesuítas encontraram na Rússia um raro refúgio, graças à proteção concedida inicialmente pela imperatriz Catarina II e, mais tarde, pelos seus sucessores. Nesta época, foram autorizados a manter as suas obras educativas e espirituais, chegando a transformar o Colégio de Polotsk em Academia pela autorização do czar Alexandre I em 1812. 

Tadeusz Brzozowski, (21 de outubro de 1749 – 5 de fevereiro de 1820) 

O envolvimento de Maistre com a Companhia de Jesus tornou-se particularmente evidente durante a sua permanência em São Petersburgo como embaixador do Reino da Sardenha. Em outubro de 1811, o padre Tadeusz Brzozowski, novo Superior da Ordem na Rússia, solicitou ao conde Razumovsky e ao príncipe Alexander Golitsyn (superprocurador do Santo Sínodo) autorização para que a escola de Polotsk adquirisse o estatuto de universidade autónoma, tornando-se assim o centro administrativo das instituições de ensino jesuíticas.

Academia de Polotsk (Colégio Jesuíta de Polotsk). Diário de guerra, 24 de julho de 1812, aquando da passagem do exército napoleónico por Polotsk. In 1: “Vom Ausmarsch bis Moskau”. Propriedade de Christian von Martens (1793-1882).  

Para reforçar a petição dos jesuítas, Maistre endereçou em 19 de outubro uma Mémoire sur la liberté de l’enseignement public (Memória sobre a liberdade do ensino público) a Golitsyn. Neste documento, o pensador defendia a utilidade político-pedagógica dos padres jesuítas – ferrenhos opositores daqueles que pretendiam derrubar os tronos e a cristandade – e criticava o monopólio estatal do ensino público.

Este episódio ilustra bem o compromisso de Joseph de Maistre com a causa jesuítica num momento em que a Companhia de Jesus se encontrava suprimida na maior parte da Europa. A Rússia constituía então um dos poucos refúgios onde a ordem podia continuar a existir legalmente, situação que se manteria até à restauração universal da Companhia em 1814.


Referências:

MAISTRE, Joseph de – Lettre à Monsieur le Chevalier de… 15 août 1811. In Lettres et opuscules inédits : précédés d’une notice biographique, par son fils, Rodolphe de Maistre, volume I, 1851.

MAISTRE, Joseph Marie, Conde de; BLANC, Alberto, Barão (ed.) – Correspondance diplomatique, tome 2. Paris: Michel Lévy frères, 1860, p.196.

PINHO, Arnaldo – “Portugal no contexto Eclesial Europeu, por alturas de 1820 a 1850”. In Catolicismo e liberalismo em Portugal: (1820-1850). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009, p. 619.

SOARES, José Miguel Nanni – Considérations sur la France de Joseph de Maistre, Revisão (historiográfica) e Tradução, Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009, pp. 5 e 79-80.

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VEIGA, Francisca Branco (2025), Joseph de Maistre e a Defesa dos Jesuítas na Rússia (blogue da autora Francisca Branco Veiga). Disponível em: https://franciscabrancoveiga.com/ [26 de outubro de 2025].

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O 5 de Outubro de 1910 e as Reações Contra as Ordens Religiosas

Litografia colorida, da autoria de Cândido da Silva (?) alusiva à revolução que deflagrou na noite de 3 de Outubro de 1910, em Lisboa, e que conduziu à proclamação da República Portuguesa 

A monarquia portuguesa manteve-se em vigor até Outubro de 1910, tendo como último soberano D. Manuel II, que subira ao trono em 1908, na sequência do regicídio que vitimou o seu pai, D. Carlos I, e o seu irmão, o Príncipe Real D. Luís Filipe.

No dia 4 de Outubro de 1910, perante as movimentações militares e populares que indicavam a iminente implantação da República, e num contexto de forte instabilidade política e social em Lisboa, o monarca decidiu afastar-se da capital. Partiu inicialmente para Mafra, onde se encontrava parte da guarnição real, seguindo depois para a Ericeira, de onde embarcou rumo a Gibraltar. Pouco tempo depois, fixou residência em Inglaterra, país que o acolheu até ao fim da sua vida.

A partida de D. Manuel II simbolizou o término de mais de sete séculos de monarquia em Portugal e marcou o início de uma nova etapa na história nacional — a Primeira República.

“Expulsão dos jesuítas em 10 de Outubro de 1910”. Bilhete postal com ilustração satírica alusiva às políticas anti-clericais de Afonso Costa.

O gesto do retratado e a composição espacial são apropriados do óleo de Louis-Michel van Loo que retrata o Marquês de Pombal – traçando com este um paralelo nas políticas anti-clericais. Data:  1910.

A Implantação da República, a 5 de Outubro de 1910, é um dos marcos mais importantes da história contemporânea portuguesa. Porém, além da mudança de regime político, esse dia e os seguintes foram também palco de episódios de tensão entre o novo poder republicano e as instituições religiosas. Este artigo revisita esses acontecimentos e analisa o impacto das medidas que viriam a definir as novas relações entre o Estado e a Igreja em Portugal.

O contexto e os acontecimentos

Na manhã de 5 de Outubro de 1910, registaram-se vários episódios de hostilidade dirigidos a instituições religiosas, em particular à Companhia de Jesus. O colégio dos jesuítas de Campolide foi invadido, tendo sido detidos o reitor, Padre Alexandre de Faria Barros, vários professores religiosos e alguns empregados. Os detidos foram conduzidos ao quartel de Artilharia 1, onde foram identificados e posteriormente enviados para o Limoeiro. Por razões de segurança, acabaram transferidos para Caxias, acompanhados por uma multidão que assistiu ao percurso.

Em Torres Vedras, o colégio do Barro foi alvo de uma busca com o objetivo de encontrar documentos considerados comprometedores. O episódio ficou marcado por atos de desordem e vandalismo. Em Setúbal e em Vale de Rosal ocorreram igualmente invasões a residências pertencentes a religiosos, conduzidas por grupos armados. Na época, os jesuítas eram frequentemente identificados como opositores à nova ordem republicana, sendo acusados de dificultar a difusão dos ideais democráticos.

As ações prolongaram-se nos dias seguintes. O convento dos Quelhas foi revistado por populares e por elementos da cavalaria, que procuravam armas e explosivos. O convento das Trinas também foi alvo de uma invasão, tendo sido evitados incidentes de maior gravidade. Estes acontecimentos decorreram num contexto de forte tensão política e social, marcado pela transição do regime monárquico para o republicano e por um acentuado anticlericalismo em alguns setores da sociedade.

A Lei da Separação

Afonso Costa assina a Lei de Separação da Igreja e do Estado, a 20 de Abril de 1911.

A 20 de Abril de 1911, o Governo Provisório da República aprovou a Lei de Separação do Estado das Igrejas, redigida por Afonso Costa, então ministro da Justiça e dos Cultos. Publicada no Diário do Governo nº 92 do dia seguinte, a lei consolidou juridicamente a separação entre as instituições religiosas e o Estado português. Inspirada pelos princípios do laicismo e da liberdade de consciência, visava limitar a influência clerical nas esferas política, social e educativa, tanto no território continental como no ultramarino.

O 5 de Outubro de 1910 marcou, assim, não apenas a mudança de regime político em Portugal, mas também o início de uma nova fase nas relações entre o Estado e a Igreja. A partir desse momento, consolidou-se uma política laica que procurou redefinir o papel da religião na sociedade portuguesa, estabelecendo as bases de um Estado moderno e secular.

A Lei é constituída por sete capítulos:

I – Da Liberdade de consciência e de culto;

II – Das corporações e entidades encarregadas do culto;

III – Da fiscalização do culto público;

IV – Da propriedade e encargos dos edifícios;

V – Do destino dos edifícios e bens;

VI – Das pensões aos ministros da religião catholicos;

VII – Disposições geraes e transitorias

“O Século: suplemento humorístico”, 8 de dezembro de 1910.

O Decreto de 8 de Outubro de 1910 e a Expulsão das Congregações Religiosas

Poucos dias após a Implantação da República, o novo governo português iniciou um conjunto de medidas destinadas a reorganizar as relações entre o Estado e a Igreja. Entre as primeiras decisões destacou-se o decreto de 8 de Outubro de 1910, que retomou antigas leis relativas à expulsão das ordens religiosas e determinou a incorporação dos seus bens na posse do Estado.

Contexto e conteúdo do decreto

O decreto com força de lei, datado de 8 de Outubro de 1910 e emitido pelo Ministério da Justiça, estabelecia a continuação em vigor de três diplomas históricos: as leis de 3 de Setembro de 1759 e de 28 de Agosto de 1767, referentes à expulsão dos jesuítas, e a lei de 28 de Maio de 1834, que determinava o encerramento dos conventos. Ao mesmo tempo, o novo decreto revogava o de 18 de Abril de 1901, que tinha autorizado a constituição de congregações religiosas durante a Monarquia Constitucional.

Com esta medida, o governo republicano procurava reforçar a política de laicização do Estado e a separação entre as instituições religiosas e a esfera pública. Nas semanas seguintes, foram publicados vários decretos e portarias complementares que designaram comissões responsáveis por proceder ao arrolamento dos bens das congregações, à aposição de selos e à sua integração progressiva no património do Estado.

Destino dos bens e impacto imediato

O processo de arrolamento visava garantir que os bens das congregações passassem legalmente para a posse pública. No entanto, na prática, parte desse património acabou por não permanecer sob administração estatal. Alguns imóveis e propriedades foram alienados, vendidos ou transferidos para particulares, nem sempre de forma centralizada ou regulamentada.

O decreto de 8 de Outubro de 1910 representou, assim, uma das primeiras medidas estruturais do novo regime republicano, ao reafirmar a separação entre o poder civil e o religioso e ao retomar legislação de séculos anteriores, adaptando-a ao contexto político do início do século XX.

1910-10-10 – Expulsão dos jesuítas, encerramento dos conventos, congregações religiosas, colégios, etc., e os todos os seus bens declarados pertença do Estado, etc – in Diário do Governo (Decreto de 8 de Outubro de 1910)
https://www.estudosportugueses.com/uploads/1/1/3/4/113423301/1910-10-10_-_dg_-_expulsao_dos_jesu%C3%ADtas_e_encerramento_dos_conventos_etc.pdf

Conclusão

A aprovação deste decreto consolidou juridicamente a posição da República face às ordens religiosas, antecipando a Lei de Separação do Estado das Igrejas, promulgada em 1911. As medidas tomadas a partir de Outubro de 1910 definiram o rumo das políticas religiosas da Primeira República e tiveram um impacto duradouro na organização social, política e patrimonial do país.

VER, INCLUSIVE, Outono de 1910 a Companhia de Jesus foi pela terceira vez expulsa de Portugal. In https://franciscabrancoveiga.com/2024/08/06/outono-de-1910-a-companhia-de-jesus-foi-pela-terceira-vez-expulsa-de-portugal/

Como referir este texto:

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VEIGA, Francisca Branco (2024), O 5 de Outubro de 1910 e as Reações Contra as Ordens Religiosas (blogue da autora Francisca Branco Veiga). Disponível em: https://franciscabrancoveiga.com/ [6 de Agosto de 2024].

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