O Elefante como elemento decorativo na tumulária

Ao longo dos tempos o elefante esteve sempre associado a grandes cerimónias. Na Ásia simbolizava o poder real. No Ocidente simbolizava eternidade, temperança, piedade, associadas à soberania, ao poder e à riqueza. Em Roma, por exemplo, fazia parte das monumentais exéquias e cortejos fúnebres dos imperadores. Na arte oriental o elefante como elemento de suporte é simbólico de animal-suporte-do-mundo: o universo repousa sobre o lombo de um elefante. Em Portugal, acompanhava os cortejos de D. Manuel, serviu como presente oferecido por D. João III ao arquiduque Maximiliano de Áustria e até o papa Pio IV solicitou a D. Sebastião um par de elefantes.

Pensa-se que o motivo que levou à escolha da representação de elefantes como suporte tumular tenha a ver com a época histórica e heróica que estávamos a passar, ligada ao descobrimento pelos portugueses de novas terras “Além-mar”, em parte porque se trata de elefantes indianos.

Além de todas estas justificações a nível formal e simbólico podemos também referir que a nível técnico este modelo tumular não implicava grandes recursos manuais e de especialidade. A obra exigia apenas um trabalho de canteiro e não de um escultor. O que cativou a realeza e a nobreza por este tipo de sepultura terá sido o seu aspeto em pirâmide e o material utilizado (mármores).

Para António Filipe Pimentel, foram as sepulturas régias da capela-mor de Santa Maria de Belém que deram início a um conjunto de monumentos funerários tipologicamente idênticos:

«E quando D. Catarina de Áustria manda erguer a capela-mor do Mosteiro dos Jerónimos para panteão da Casa de Avis, uma concepção inteiramente nova, austera e de base essencialmente arquitectónica, faz a sua aparição nos túmulos reais. Apoiados sobre o dorso de elefantes – único elemento figurativo -, os quatro mausoléus, absolutamente idênticos, abrigam sob os arcos rasgados nos flancos da ousia uma severa estrutura moldada de configuração piramidal que apenas no remate coroado ostenta uma referência velada à qualidade dos régios ocupantes. Estabelece-se assim o protótipo do túmulo maneirista cuja descendência uniformizará o panorama das nossas sepulturas murais seiscentistas, estendendo ainda a sua influência ao século XVIII»[1].

Segundo Vítor Serrão, este tipo de obra «…revela bem o apuro com que na época os artistas executavam tais empreitadas, mesmo quando se tratava…de encomendas secundárias…». Este trabalho feito em mármore revela, para o professor, «…equilíbrio e dignidade…» denunciando da parte do projetista alguma sensibilidade[2]. Para este investigador existem,

«…duas ordens de razões para a grande aceitação conhecida pela sua fórmula: por um lado, o inevitável prestígio associado a monumentos fúnebres régios, e, por outro, o facto de a realização deste modelo não implicar, a nível técnico, a necessidade de grandes recursos ou apresentar particulares dificuldades»[3].

Este tipo de escultura tumular é de grande importância, não apenas pelo seu valor histórico, mas, também, devido ao seu valor artístico, pois eram quase sempre executadas por bons escultores, para servirem de morada “eterna” para gente da nobreza ou religiosos. No caso dos espaços religiosos ligados à Companhia de Jesus (colégio de S. Lourenço, no Porto e Noviciado da Cotovia, em Lisboa) iremos encontrar na capela-mor das suas Igrejas o túmulo do fundador, conforme impunham as “Constituições”(309-310), além de testemunhar o sentimento de gratidão à figura benemérita do fundador (312-314). Nenhum colégio jesuítico podia ser fundado sem que existisse uma pessoa que garantisse financeiramente a construção e manutenção dos edifícios em causa.

Os exemplos aqui focados (colégio de S. Lourenço, no Porto, Noviciado da Cotovia, em Lisboa e a Capela dos Castro, em Benfica) reproduzem o modelo régio que se encontra na capela-mor da igreja do mosteiro Jerónimo de Santa Maria de Belém e que se integra numa tipologia de tumularia portuguesa que abrange o final do século XVI até ao início do século XVIII.

Os túmulos são compostos por essas e suporte. Essas com uma sucessão de volumes em forma piramidal, lembrando monumentos fúnebres do antigo Egipto, da Suméria e da Índia hindu ou, em Portugal, faz lembrar as cerimónias fúnebres onde utilizando um catafalco, que se cobria com tecidos ricos, como por exemplo, brocados e veludos, se colocava o caixão com o defunto.

Em relação ao suporte, pensa-se que o motivo que levou à escolha da representação de elefantes tenha a ver com a época histórica e heroica que estávamos a passar, ligada ao descobrimento pelos portugueses de novas terras “Além-mar”, em parte porque se trata de elefantes indianos.

Colégio de S. Lourenço (Igreja dos Grilos), da Companhia de Jesus

Nomes alternativosIgreja e Colégio de São Lourenço
Seminário Maior de Nossa Senhora da Conceição
Estilo dominanteManeirista, Barroco, Neoclássico
Início da construção1577 (interior igreja)
1690 (fachada atual)
Inauguração1622 (sagração da igreja)
1630 (colégio)
Função inicialColégio da Companhia de Jesus

Em dia de S. Lourenço do ano de 1570, os jesuítas lançaram a primeira pedra da sua igreja e colégio nas imediações do Paço Episcopal. Em estilo maneirista barroco-jesuítico, foi financiado por doações de fiéis, mas principalmente por Frei Luís Álvaro de Távora, Comendador de Leça do Balio, da Ordem de Malta, cujo brasão de armas encima a fachada principal.

A Igreja e Colégio de S. Lourenço é vulgarmente designada por Igreja dos Grilos, devido ao facto de ter pertencido aos Frades Grilos da Ordem de Santo Agostinho.

Começou a ser construída em 1577, sendo o seu arquiteto inicial Afonso Álvares. Posteriormente, Baltazar Álvares conduz os trabalhos e altera os planos de Afonso Álvares.

Seguindo o esquema das igrejas jesuíticas, a frontaria de S. Lourenço compreende dois andares repartidos em cinco corpos delimitados por pilastras. A porta principal é constituída por duas colunas assentes em pedestais, sobrepujado por frontão curvo interrompido, tendo ao centro a heráldica jesuítica. Lateralmente abrem-se duas outras portas com frontões triangulares, de menores dimensões.

No meio do piso intermédio abre-se uma grande janela encimada por brasão do patrocinador da obra, Frei Luís de Távora, além da cruz de Malta.

A capela-mor apresenta uma abóbada de berço com caixotões esquartelados. O seu retábulo é uma obra neoclássica e contém uma pintura de João Batista Ribeiro alusiva ao tema de Jesus Cristo inflamando o Coração de Santo Agostinho, possuindo ainda uma escultura de Santo Inácio de Loyola. Numa das paredes abre-se um arco que alberga o túmulo do fundador em mármore suportado por elefantes, de composição semelhante aos túmulos régios do Mosteiro dos Jerónimos, do noviciado da Cotovia e aos da Capela dos Castros, em Benfica.

Pormenor dos elefantes que suportam o túmulo (esquerdo)
Pormenor dos elefantes que suportam o túmulo (direito)

Com a expulsão dos jesuítas em 1759, por ordem do Marquês de Pombal, a igreja foi doada à Universidade de Coimbra até à sua compra pelos Frades Descalços de Santo Agostinho que ali ficaram de 1780 a 1832.

O túmulo do fundador é formado por arca assente em dois elefantes de lavor esquemático e é encimada por uma estrutura de perfil piramidal sobre a qual se sobrepõe o seu brasão; na lastra, uma inscrição com tipo de letra capital quadrada: “AQUI JAZ FREI LUÍS ÁLVARES DE [TÁVORA] BAILIO DE LAN[GO] E LEÇA COMENDADOR DE POIARES E DA MAGISTRAL DE VILA COVA. FUNDOU ESTE COLÉGIO DOTOU DUAS MISSAS CADA DIA E DUAS ESMOLAS PARA CASAMENTO DE DUAS ORFÃS CADA ANO FALECEU NO DE MDCXLV EM XXIII DE OUTUBRO”.

Datas a destacar:

  • 1614, 24 Maio – data do contrato em que Frei Luís Álvares de Távora, Cavaleiro da Ordem de Malta, Bailio de Leça e Lango e Comendador de Poiares se ofereceu para o lugar de fundador do colégio, mediante a construção de um carneiro, no meio da capela-mor, e a colocação do seu brasão na fachada principal da igreja.
  • 1614 / 1616 – Frei Luís Álvares de Távora dá aos jesuítas 30 mil cruzados, sendo as obras do colégio incrementadas, nomeadamente com a construção do pátio principal e da atual igreja; construção do túmulo do fundador, na capela-mor.

Noviciado da Cotovia (Igreja de Nossa Senhora da Assunção, da Cotovia[4]), da Companhia de Jesus

Museu/instituição: Museu Nacional de História Natural e da Ciência, Universidade de Lisboa

Denominação: Túmulo/ Túmulo de Fernão Teles de Meneses e sua esposa D. Maria de Noronha

Autor (es): Desconhecido

Datação: Início do século XVII (± 1616)

A primeira pedra do noviciado da Cotovia, da Companhia de Jesus, foi lançada a 23 de abril de 1603, catorze anos depois do primeiro contrato para a construção do edifício.

D. Maria de Noronha, esposa do fundador do noviciado da Cotovia, Fernão Teles de Meneses, pediu que as obras da capela-mor (do lado do Evangelho) terminassem o mais rápido possível, para lá colocar o túmulo do seu marido, pois os ossos tinham ficado num trono do cruzeiro da igreja de S. Roque, à espera do traslado. Mandou fazer um mausoléu que lhe custou 3.000 cruzados, onde foram colocados primeiro, os ossos de Fernão Teles e em 1623 os seus.

Este monumento fúnebre reproduz o modelo régio que se encontra na capela-mor da igreja do mosteiro Jerónimo de Santa Maria de Belém e integra-se numa tipologia de tumularia portuguesa que abrange o final do século XVI até ao início do século XVIII.

Túmulo de Fernão Teles de Meneses e sua esposa D. Maria de Noronha (cerca de 1616)

O padre António Franco refere-se ao túmulo da seguinte maneira:

«Mandou esta Senhora fabricar hum magestozo mausoleo de mármores, assentado sobre dous elefantes em hũ vão no lado do Evangelho da Capella mor. He a obra neste género grandioza, fez de curto três mil cruzados»[5].

Para Matos Sequeira, «O sumptuoso túmulo era de mármore liso, assente sobre dois elefantes, tendo na face do caixão um extensíssimo epitáfio»[6]. Quando colocado em cima dos elefantes de pedra o túmulo atinge os seis metros.

Pormenor do elefante, suporte tumular

Num manuscrito intitulado História de Lisboa a referência a este túmulo e aos seus elefantes é feita da seguinte maneira:

 « Na Capella se vê da parte do Evangelho hum arco de pedraria com bastante fundo sobre dous elefantes de mármore com cor que nam deixa de ter semelhança com a natural dos elefantes, e sobre elles um bem laurado tumulo…»[7].

Na base do túmulo encontra-se uma inscrição gravada em sete linhas, que dizia o seguinte:

«AQUI JAZ FERNÃO TELES DE MENESES FILHO DE BRAS TELES DE MENESES, CAMAREYRO MOR E GUARDA MOR E CAPITÃO DOS GINETES, Q FOI DO IFFÃTE D. LUIS, E DE D. CATARINA DE BRITO SUA MOLHER, O QUAL FOY DO CÕSELHO DO ESTADO D`EL REY NOSSO SÕR. E GOVERNOU OS ESTADOS DA INDIA E O REYNO DO ALGARVE E FOY REGEDOR DA JUSTIÇA DA CASA DA SUPLICAÇÃO E PRESIDENTE DO CONSELHO DA INDIA E PARTES ULTRAMARINAS. E A SUA MOLHER D. MARIA DE NORONHA FILHA DE D. FRÃCISCO DE FARO VEDOR DA FAZENDA DOS REYS D. SEBASTIÃO E D. ANRIQUE, E DE D. MESIA DE ALBUQUERQUE SUA PRIMEYRA MOLHER: OS QUAIS FUNDARAM E DOTARÃO ESTA CASA DA PROVAÇÃO DA COMPª DE JESU, E TOMARÃO ESTA CAPELLA MOR PÊRA SEU IAZIGO. FALLECEO FERNÃO TELES DE MÑS A XXVI. DE NOVº DE M.D.C.V. E DE Mª DE NR. A VII DE MARÇO DE MDCXXIII»[8].

Depois do incêndio de 1843, este túmulo que estava na capela-mor da igreja do Noviciado da Cotovia, foi removido para uma dependência do edifício, apeado dos seus elefantes e emparedado, juntamente com outros destroços da igreja, restos de imagens, colunas e capitéis[9]. Em 2012, foi restaurado e reinstalado no edifício principal do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, num local próximo do original.

Convento de São Domingos de Benfica (Capela dos Castros), Lisboa

Designação Capela dos Castros

Outras Designações Capela de Corpus Christi / Convento de São Domingos de Benfica / Instituto Militar dos Pupilos do Exército / Igreja da Força Aérea Portuguesa / Igreja de Nossa Senhora do Rosário

Integrada no complexo do antigo convento de S. Domingos de Benfica, a Capela dos Castros, de gosto maneirista, foi fundada sob a invocação de Corpus Christi, em 1648, por D. Francisco de Castro, bispo inquisidor-mor, neto do vice-rei da Índia, D. João de Castro e foi destinada pelo fundador para jazigo da sua família.

O interior da Capela é composto por um espaço amplo, enobrecido com pedra de lioz e mármores policromos. De nave única, possui seis tramos, marcados por arcos de volta perfeita, sendo coberto por abóbada de berço em pedra, dividida em caixotões. Quatro dos tramos foram transformados em arcossólios (nichos em forma de arco), albergando os túmulos dos membros da família do fundador da capela.

Interior da Capela dos Castros, integrada no Instituto dos Pupilos do Exército.

Os quatro túmulos são de mármore e assentam sobre dois elefantes de mármore cinzento-escuro. Nele repousam, de um lado, D. João de Castro e sua esposa D. Leonor Coutinho e no outro lado D. Álvaro de Castro, seu filho, e D. Ana de Ataíde, sua mulher. No presbitério encontram-se as sepulturas de D. Francisco de Castro e de sua irmã D. Violante de Castro, Condessa de Odemira. Debaixo da capela, estão sepultados outros membros da família.

A capela dos Castros integra-se, atualmente, no conjunto do Instituto dos Pupilos do Exército, tendo sido declarada Monumento Nacional por decreto de 16 de junho de 1910.

Túmulos régios do Mosteiro dos Jerónimos (Capela-mor)

Capela-mor do Mosteiro dos Jerónimos,
Túmulos do rei D. Manuel e da rainha D. Maria.

A capela-mor que havia sido originalmente erguida como panteão monárquico por Diogo de Boitaca (França, possivelmente Languedoc, c. 1460 – Batalha (Portugal), 6 de dezembro de 1527)[10], no início do século XVI, foi demolida por ordem de D. Catarina, regente do reino entre 1557 e 1562, mulher de D. João III.

Em seu lugar foi instalada outra, elaborada por Jerónimo de Ruão (em 1571), introduzindo o estilo maneirista – o que criou um interessante contraste com a predominante ornamentação manuelina.

Nas arcadas laterais, entre os pares de colunas jónicas (na parte inferior) e coríntia (na parte superior), observam-se os túmulos régios, que na capela estão dispostos por ordem bíblica: à esquerda (do lado do Evangelho) as arcas funerárias de D. Manuel I e de  sua esposa D. Maria, dispostas sobre elefantes de mármore, enquanto ao lado direito (da Epístola) estão os túmulos de D. João III e de D. Catarina.

Em outubro de 1572, os trabalhos de construção da capela-mor do Mosteiro dos Jerónimos estavam concluídos. Nos dois lados da capela, em arcadas individuais, encontravam-se quatro imponentes túmulos régios com a forma de sarcófagos de mármore, assentes sobre elefantes em mármore verde, com presas de jaspe. Os túmulos estavam encimados por coroas imperiais assentes em coxins de mármore. Em cada túmulo existem cartelas com inscrições latinas louvando os régios defuntos, sendo estas da autoria André de Resende (Évora, por volta de 1500 – 9 de dezembro de 1573).


[1]  PIMENTEL, António Filipe, Tumularia. In Dicionário de Arte Barroca em Portugal. Dir., José Fernandes Pereira, Lisboa, 1989, p. 502.      

[2] SERRÃO, Vítor, O arquitecto maneirista Pedro Nunes Tinoco: novos documentos e obras: 1616-1636. Sep. Bol. Cultural Assembleia Distrital Lisboa, 83, Lisboa, 1979, pp. 30-31.

[3] Id., ibid., p. 4.

[4] A quinta da Cotovia, do Monte Olivete, tinha uma capelinha dedicada a Nossa Senhora da Assunção , sendo mais tarde adotado o mesmo orago na nova igreja.

[5] FRANCO, António, Imagem da Virtude… em Lisboa, 1717, p.12.

[6] SEQUEIRA, Gustavo de Matos, Depois do terremoto, pp. 217-218.

[7] BNP, cód. 145 e 429, Capítulo XV, Da Casa do Noviciado da Companhia de Iesus, códices para o estudo dos monumentos sacros da capital, com 476 fl, e foi escrito nos annos de 1704 a 1708, s.p.

[8] FRANCO, António, Imagem da Virtude…, Lisboa, 1717, p.12.

[9] SEQUEIRA, Gustavo de Matos, Depois do terramoto, p. 245

[10] Foi agraciado por D. Manuel com o título de “Mestre das Obras do Reino”.

In VEIGA, Francisca Branco. Noviciado da Cotovia: O Passado dos Museus da Politécnica 1619-1759. Dissertação (Mestrado em Património Cultural) – Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2009.

A pintura do jesuíta Domingos da Cunha e a arte como pedagogia*

Domingos da Cunha (?), pormenor da pintura “Visitação”

[Irmão Domingos da Cunha (entrou na S.J. 1632 – m. 1644) foi Coadjutor na Casa de Provação da Cotovia[1]. Entrou no noviciado já com 34 anos. O jesuíta António Franco refere que se dava muito à oração e à mortificação e tinha uma devoção muito intensa pela imagem de Nossa Senhora da Graça, que se encontrava na capela do cruzeiro da igreja do noviciado. Tinha muitos arrebatamentos sobrenaturais e devido ao excesso de trabalho ficou tísico, levando-o à morte. O padre Bernardino de Sampaio (entrou na S.J. 1608, em Évora – m. 1654) foi Reitor da Casa da Cotovia e escreveu sobre a vida de Domingos da Cunha.]

O pintor Domingos da Cunha (1598-1644), noviço e coadjutor da Casa de Provação da Cotovia, pintou mais de cinquenta telas[2] para o noviciado, infelizmente não se encontra no MNHNC nenhum exemplar para que possamos perpetuar o seu nome como noviço dessa casa. Mesmo assim, não podemos deixar de fazer referência a algumas das suas pinturas, como a Visitação, que se encontra na sacristia da Igreja de S. Mamede, a Assunção da Virgem, pintura do retábulo da Capela-mor da igreja do noviciado, desaparecida no início do século, referida no manuscrito da BNP sobre a História de Lisboa, como sendo uma pintura deste pintor[3],  e ao conjunto de painéis sobre a vida de Santo Inácio de Loyola que se encontram na sacristia da igreja de S. Roque e aos quais muitos investigadores de arte se referem como “pertencentes” à casa do Noviciado da Cotovia[4]. Obras que este pintor criou para o noviciado onde viveu e que são, todas elas, excelentes exemplares da sua boa mestria como pintor religioso[5].

As pinturas do jesuíta Domingos da Cunha são um bom exemplo da arte como pedagogia. Fez a sua formação artística em Madrid na oficina do pintor régio Eugénio Caxès (1575-1634) absorvendo a técnica «…suave de modelação cálida e luminosa, de ressaibos venezianos e florentinos «reformados», os rasgos naturalistas de modelado e de caracterização figurativa, a iconografia complexa, e a fresca soltura de paisagismo»[6].

Podemos caracterizar a pintura de Domingos da Cunha como, algo tenebrista, de composição em claro-escuro, com focos de iluminação contrastante e artificial, baseando-se no ambiente pictural madrileno, na sua feição mais radical.

Do seu Mestre recebeu o gosto italiano do «…«realismo lumínio» e do colorido manchado e quente…», visível na série de telas sobre a vida de Santo Inácio, que se encontram na nave da igreja de S. Roque, assumindo assim o epíteto de artista da “geração de modernidade protobarroca.

Alem de ser considerado um pintor religioso, é também celebrado como retratista e pode-se afirmar que «foi moda ser retratado por ele, embora se pagasse caro»[7].

Igreja de S. Mamede, pintura “VISITAÇÃO”

“VISITAÇÃO”
Domingos da Cunha (Cabrinha)
Igreja de S. Mamede (Lisboa), Sacristia.
Pintura a óleo, cerca de 1630
Suporte: Tela
Dimensões:
1, 48m × 2,09m

Descrição:

Ao centro Maria SSª cumprimenta a sua prima Isabel. À esq. Do observador, S. Jose faz festas a um cão. Atrás dele apruma-se um retrato seguido de outra figura feminina. Do lado direito Zacarias (sacerdote do Templo de Jerusalém, pai de João Baptista e esposo de Isabel) avança de braços abertos, tendo junto de si outro figurante, com mão em posição esquisita. Será o autorretrato de Cabrinha, vestido de negro, com colarinho típico dobrado sobre a gola, no gosto elegante da época?

Segundo Vitor Serrão,[8] e para o jesuíta Costa Lima[9] esta pintura pertencente ao “…extinto Colégio jesuítico da Cotovia…”. Joaquim O. Caetano refere que Domingos da Cunha executou “…algumas pinturas para o Noviciado da Cotovia, entre as quais uma «Visitação» que se encontra na Sacristia da Igreja de S. Mamede…”[10]  tal como também o afirma Costa Lima, assegurando que “…o quadro fora da Politécnica, antigo Noviciado dos jesuítas, onde o famoso e santo artista reparou a sua vida boémia…”[11]. Pensa-se, sem ter certeza nenhuma nem nada que o prove, que Domingos da Cunha se introduziu como personagem nesta pintura devido aos traços fisionómicos algo bexigosos e orientalizantes de uma figura.

Pintura de muito boa qualidade onde se visualiza muito bem a influência do seu professor de pintura em Madrid, Eugénio Caxès. Esta pintura revela-nos uma excelente qualidade de desenho, definindo um “pintor hábil e bem adestrado”. Podemos encontrar nas telas de Santo Inácio, pintadas pelo mesmo pintor, o mesmo tipo de figurinos, rigor no desenho, de sentimento cromático e com a tentação de um claro-escuro vigoroso.

Com a supressão da Companhia de Jesus e sequestro dos seus bens e papéis, e a perda das tradições orais perdemos um pouco da nossa história e a possibilidade de identificar muitas peças no âmbito da História da Arte, tal como alguns dos personagens retratados, como é o caso aqui referido.

Igreja de São Roque, Pinturas de Domingos da Cunha

Pintura a óleo, cerca de 1640-1644

Série de catorze painéis da VIDA DE SANTO INÁCIO DE LOYOLA

 Suporte: Tela

I – Santo Inácio de Loyola recebendo a visita de São Pedro

II – Santo Inácio dando as roupas a um mendigo em Montserrat

III – Êxtase de Santo Inácio de Loyola em Manresa

IV – Santo Inácio de Loyola Esmolando

V – O Senador Marco António Trevisano encontra Santo Inácio de Loyola dormindo sobre as arcadas de S. Marcos de Veneza

VI – Santo Inácio de Loyola agredido por um guarda no Monte das Oliveiras em Jerusalém

VII – Missa de Santo Inácio de Loyola em Montmartre.

VIII – Encontro de Diogo de Gouveia com Santo Inácio de Loyola no Colégio de Santa Bárbara em Paris.

IX – Conversão de um fidalgo pecador por Santo Inácio de Loyola perto de Paris

X – Visão de Santo Inácio de Loyola na capela de La Storta

XI – Missa de Santo Inácio de Loyola em Monte Cassino

XII – O Papa Paulo III aprova os estatutos da Companhia de Jesus

XII – Visão mística de Santo Inácio de Loyola durante a celebração da missa.

XIV – Morte de Santo Inácio de Loyola

Descrição:

Estes catorze quadros encontram-se colocados sobre o arcaz da Sacristia da Igreja de S. Roque acima da série xaveriana de André Reinoso, do séc. XVIII. Para Vitor Serrão e também referido por Reynaldo dos Santos, esta série da sacristia é de nível inferior à da nave da Igreja, «mostrando ser obra de colaborações díspares, como também que estava mal montada sobre o arcaz»[12]. Foram aí colocados, possivelmente, pós-terramoto com a consequente destruição do Noviciado da Cotovia, pois o espaço onde foram colocados não parece adaptado à série.

Para pintar estas telas o pintor Domingos da Cunha utilizou as gravuras da Vita Beattii Patris Ignatii Loyolae Religionis Societatis Iesu Fundatoris ad Vivum Expressa ex ea quam, de P. Petrus Ribadeneyra, publicada em 1610 por Cornelis Galle, em Antuérpia, com dezasseis buris de Cornelis e de Theodore Galle, de Adrien e Johann Collaert e de Charles de Mallery[13]. Mas nota-se outras influências, ao nível estético, com alguma modernidade, saído dos modelos «caravagescos». É visível ao nível pictórico um desequilíbrio, mostrando que, possivelmente, um colaborador seu também participou nesta construção[14].

Luís Moura Sobral estudou o ciclo hagiográfico da sacristia de S. Roque e concluiu o seguinte acerca dos painéis da Vida de Santo Inácio: estes não estão dispostos seguindo uma narrativa biográfica; dois dos quadros repetem o mesmo episódio; oito das telas foram feitas cerca de 1619, com legendas na banda inferior em castelhano e com figuras de pequena escala; as restantes seis pinturas tem figuras monumentais, com efeitos tenebristas e alguns exageros na representação anatómica e estão legendadas na banda inferior em português. Estas, para Moura Sobral e Joaquim Caetano são as verdadeiras obras de Domingos da Cunha, com semelhanças de composição e de fatura (exceto aquela onde Santo Inácio ouvindo um sermão lhe saem raios da cabeça, que se encontra mais perto das telas da nave da igreja, também elas de Domingos da Cunha), executadas para S. Roque ou reaproveitadas do Noviciado da Cotovia[15].   

Sendo estas pinturas de Domingos da Cunha, noviço da Casa de Provação da Cotovia, que pintou para esta casa “mais de cinquenta quadros”[16], e tendo como possibilidade o facto de terem pertencido a este noviciado, não podíamos deixar de as referenciar mesmo sem a certeza dessa possibilidade, inserindo-as na coleção que nos encontramos a investigar, no Museu de Ciência, sempre apoiados em informações de investigadores de arte muito conceituados no nosso país.

** A igreja romana respondendo aos ataques do Protestantismo realizou um conjunto de reformas no seu seio. Através de normas saídas do Concílio de Trento (1545-63) a igreja aboliu o direito da consciência individual humanista e impôs princípios de autoridade dogmática, assumindo um rígido carácter catequético. O Maneirismo foi o primeiro “estilo” da Contrarreforma e veio a incorporar muitas das suas ideologias banindo tudo o que era herético, profano ou impuro nas obras de arte. Mas ao mesmo tempo este Concílio acentuou o interesse pedagógico da veneração das imagens sagradas (Sessão XXV, Papa Pio IV, 03 e 04 de Dezembro de 1563, “A Invocação e Veneração às Relíquias dos Santos e das Sagradas Imagens”)[17]e o artista maneirista aceitou essas normas contrarreformistas de propagação doutrinária, sempre supervisionado pelos bispos, “visitadores” de cada diocese, funcionários da Inquisição e do clero em geral.

O gosto dos jesuítas pela Gesamtkunstwerk ou obra de arte total, mostra que, associando-se a artistas nacionais e estrangeiros, estes “homens de Deus” conseguiram interpretar os princípios estéticos vigentes no mundo católico pós reforma.

As normas saídas do Concílio de Trento foram adotadas pela Companhia a todos os níveis. Inácio de Loyola afirmava que: «Louvar os ornamentos e edifícios das igrejas. Do mesmo modo as imagens. Venerá-las segundo o que representam»[18].

Em outubro de 2020, Vítor Serrão escreveu um artigo para a revista Brotéria, Cristianismo e Cultura cujo artigo tem como título Redescoberta de uma importante tela de Domingos Da Cunha, O Cabrinha (1598–1644). Refere o professor e historiador de arte que, «Num recente leilão de antiguidades e obras de arte moderna e contemporânea realizado em Lisboa pela Cabral Moncada Leilões, a 3 de Dezembro de 2019, foi licitado um belíssimo quadro que representa
O Senador Marco António Trevisani encontra Santo Inácio de Loyola a dormir sob as arcadas de São Marcos em Veneza». Afirma Vítor Serrão que, «Já conhecia esta pintura, aliás, a partir de uma fotografia publicada por
J. da Costa Lima em 1936 num artigo na Brotéria: a tela vinha reproduzida nesse estudo como de colecção particular e proveniente dos acervos do colégio jesuítico da Cotovia, onde faria parte de uma série de telas com a Vida e milagres de Santo Inácio de Loyola que decoravam uma capela da igreja do Noviciado da Companhia de Jesus».

Na minha tese de mestrado sobre o Noviciado da Cotovia encontrei a seguinte informação sobre o local de origem de algumas das pinturas deste pintor jesuíta: «Passando ao segundo piso (do edifício que correspondia ao Noviciado da Cotovia) , por meio de uma escada larga e clara, encontrava-se um corredor que ficava paralelo à fachada. Logo no início desse corredor ficava uma das duas capelas interiores do Noviciado. O fundador desta capela foi Lourenço Lombardo que investiu nela mais de mil cruzados[19]. Devido à sua posição no edifício, no início do corredor e perto da portaria, era frequentada não só pelos noviços mas também por padres externos e nobres. Tinha um tecto de abóbada em gesso decorado a ouro e o chão era de tijoleira com uma pedra de mármore negra ao meio. Do lado esquerdo tinha três janelas de vidro verde por onde entrava a claridade e entre elas havia algumas telas, do pintor jesuíta Domingos da Cunha, com representações da vida de S. Francisco de Xavier. O rodapé de azulejo era pintado com cenas dos mistérios de Nossa Senhora. Entre as portas de acesso à capela havia um grande painel em caixilho de talha dourada onde se via S. Francisco de Xavier morrendo abandonado numa cabana. Em frente às janelas e também sobre o rodapé de azulejos encontravam-se outros quadros de Domingos da Cunha com passos da vida de Santo Inácio de Loyola. A capela-mor era toda dourada, tendo sido o seu retábulo feito por Domingos da Cunha. Contornando o arco dela feito a gesso e raiado a ouro havia a seguinte inscrição: Jesus Cristo Salvador do Mundo. O mobiliário da capela consistia em bancos simples e dois grandes armários dourados para guardar os paramentos[20].

Esta capela ardeu em Dezembro de 1731 devido à chama de uma vela que caiu sobre os estofos que ornamentavam um presépio. Os prejuízos foram cerca de 5.000$000 reis[21]. Encontrámos informação de que se encontrava arruinada em 1759, quando foi feito o inventário dos bens da igreja após a expulsão dos jesuítas de Portugal e do sequestro dos bens[22]

Pintura do altar-mor da Igreja do Noviciado da Cotovia

 “Assunção da Virgem”

Paradeiro desconhecido

Pintura a óleo, cerca de 1635.

Suporte: tela

Dimensões: desconhecidas

“Assunção da Virgem”, Domingos da Cunha (paradeiro desconhecido)

Descrição: Painel de grandes dimensões que pertencia ao altar-mor da Igreja do Noviciado da Cotovia. O manuscrito da BNP sobre a História de Lisboa refere que a Capela-mor da Igreja do Noviciado da Cotovia era muito bem proporcionada e tinha no retábulo uma pintura do pintor Domingos da Cunha e «…o lugar em que havia de ter a tribuna se vê hum grande e fermoso paynel que representa a sobida da Virgem Senhora pera o Ceo assistida dos sagrados Apostolos, e dos coros dos anjos, que vam acompanhando o seo triunpho obra de hum Religioso da mesma casa, que nam so foi insigne na arte da pintura, mas também na virtude e perfeyçam religiosa…»[23].


[1] Corresponde ao atual espaço ocupado pelo Museu Nacional de História Natural e da Ciência.

[2] FRANCO, António, Imagem da Virtude…em Lisboa, p.487.

LIMA, J. da Costa, Para a identificação da obra do Mestre Cabrinha, p.28.

[3] BNP, cód. 145 e 429, Capitulo XV, Da Casa do Noviciado da Companhia de Iesus, s.p.

[4] Para Moura Sobral e Joaquim Caetano são as verdadeiras obras de Domingos da Cunha, executadas para S. Roque ou reaproveitadas do noviciado da Cotovia.

SOBRAL, Luís de Moura, Espiritualidade e propaganda nos programas iconográficos…, p. 401.

CAETANO, Joaquim Oliveira, Pintura, Colecção de Pintura da Misericórdia de Lisboa, Século XVI ao Século XX, Tomo I, 1998. Ibidem., p.54

[5] SERRÃO, Vítor, Domingos da Cunha (o Cabrinha). In Dicionário da Arte Barroca em Portugal,  p. 143, 144; Idem, A Pintura Proto-barroca em Portugal, 1612-1657,  p.125

[6] SERRÃO, Vitor, A Pintura Proto-barroca em Portugal, 1612-1657,  p.119; Idem, ” Redescoberta de uma importante tela de Domingos Da Cunha, O Cabrinha (1598–1644)”. In Brotéria, Cristianismo e Cultura, vol. 191-4 (out. 2020), pp. 300-306.

[7] LIMA, J. da Costa, Artistas velhos e novos, p.405.

[8] SERRÃO, Vítor Manuel G. Veríssimo, A pintura Proto-Barroca em Portugal, 1612-1657, Coimbra, 1992, p. 133.

[9] LIMA, J. da Costa, Artistas Velhos e Novos, Lisboa, 1941, p.408.

[10] CAETANO, Joaquim Oliveira, O púlpito e a imagem: os jesuítas e a arte, Lisboa, 1996, p.23 e 54.

[11]  LIMA, J. da Costa, Artistas Velhos e Novos, in Brotéria, I, Abril de 1941, p.408.

[12] SERRÃO, Vitor Manuel G. Veríssimo, A pintura Proto-Barroca em Portugal, 1612-1657, p. 140.

[13] SOBRAL, Luís de Moura, Espiritualidade e propaganda nos programas iconográficos, p.402.

[14] Id., ibid., p. 141.

[15]SOBRAL, Luís de Moura, Espiritualidade e propaganda nos programas iconográficos…, p. 401.

CAETANO, Joaquim Oliveira, Pintura. Colecção de Pintura da Misericórdia de Lisboa, Século XVI ao Século XX, Tomo I, 1998.

Id., ibid., p.54

[16] LIMA, J. da Costa, Para a identificação da obra do Mestre Cabrinha, p. 28.

[17] IGREJA CATÓLICA, Concilio de Trento, 1545-1563 — O Sacrosanto e Ecuménico Concilio de Trento em Latim e Portuguez. Tradução e organização por Jean-Baptiste Reycend. Lisboa: Officina patriarc. De Francisco Luiz Amendo, 1781, Tomo 2, p. 347-357. 

[18] INÁCIO DE LOYOLA, Exercícios Espirituais (360).

[19] SEQUEIRA, Gustavo de Matos, Depois do terramoto, p.231

[20] Manuscrito B-5-24/ cód. 429/ cód. 145 da
Biblioteca Nacional de Portugal, são o mesmo documento.

[21] B. N.P.,  B-12-33 , cap. VII, p.345.

[22] LINO, Raúl, Documentos para a história da arte em Portugal, 4º vol.: Noviciado da Cotovia e Hospício de São Francisco de Borja [do] Arquivo do Tribunal de Contas. – IX, 104, [1] p., [3] f. il., p. 20.

[23] BNP, cód. 145 e 429, Capitulo XV, Da Casa do Noviciado da Companhia de Iesus, s.p.

*Referência deste artigo: VEIGA, Francisca Branco – Noviciado da Cotovia, O Passado dos Museus da Politécnica (1619-1759). Tese apresentada para obtenção do grau de mestre em Ciências da Comunicação – Património Cultural, fev. 2009. Inserção atualizada do artigo de Vítor Serrão, ” Redescoberta de uma importante tela de Domingos Da Cunha, O Cabrinha (1598–1644)”. In Brotéria, Cristianismo e Cultura, vol. 191-4 (out. 2020), pp. 296-311.

O Tratado de Tordesilhas faz 527 anos

A 7 de junho de 1494 foi assinado o Tratado de Tordesilhas, celebrado entre o Rei D. João II de Portugal e os Reis Católicos de Castela e Aragão, que definiria os hemisférios de influência portuguesa e castelhana.

O Tratado de Tordesilhas foi ratificado pelos reis Fernando e Isabel de Castela em 2 de julho de 1494, e por D. João II, em Setúbal, no dia 5 de setembro do mesmo ano.

O Tratado dividiu o mundo a partir de um meridiano 370 léguas a oeste do arquipélago de Cabo Verde, de polo a polo, dividindo o Oceano Atlântico em duas metades. As terras a oeste da linha ficaram para a Espanha e, as a leste, para Portugal. O Tratado ficou em vigor até 1750, quando passou a valer o princípio de que a terra pertence a quem a ocupa (princípio do direito privado romano do uti possidetis, ita possideatis).

Pelo Tratado de Alcáçovas de 1479 Portugal renunciava às Canárias, enquanto Castela deixava para Portugal todas as outras ilhas atlânticas e o comércio da costa africana. Em 1492 Cristóvão Colombo chegava à América, originando nova disputa sobre a sua posse. D. João II invocava o Tratado de Alcáçovas e reivindicava para Portugal a sua pertença. Os Reis Católicos, que enviaram a expedição de Colombo, reclamaram junto do papa Alexandre VI. Em 1493 o papa, através de uma bula, marca uma linha divisória que passava por um meridiano situado 100 léguas a oeste do arquipélago de Cabo Verde. D. João II não aceitou esta divisão. E é por isso que se diz que D. João II já teria conhecimento da existência do Brasil.

Este quadro do século XV confirma a assinatura do Tratado em Tordesilhas.
Planisfério de Cantino (c. 1502), carta náutica portuguesa mostrando o meridiano de Tordesilhas e o resultado das viagens de Vasco da Gama à Índia, Colombo à América Central, Gaspar Corte-Real à Terra Nova e Pedro Álvares Cabral ao Brasil.
Imagem: Biblioteca Estense (Itália)

“(…) E porque poderá ser que os navios e gentes dos ditos senhores rei e rainha de Castela e de Aragão, etc., ou por sua parte, terão achado, até 20 dias deste mês de Junho em que estamos da feitura desta capitulação, algumas ilhas e terra firme dentro da dita raia que se há-de fazer de pólo a pólo, por linha direita em fim das ditas 370 léguas contadas desde as ditas ilhas do Cabo Verde ao ponente como dito é, é concordado e assentado por tirar toda dúvida, que todas as ilhas e terra firme que sejam achadas e descobertas, em qualquer maneira, (…) sejam e fiquem para o dito senhor rei de Portugal e dos Algarves, etc., e para seus sucessores e reinos para sempre jamais. E que todas as ilhas e terra firme que até aos ditos 20 dias deste mês de Junho em que estamos sejam achadas e descobertas pelos navios dos ditos senhores rei e rainha de Castela e de Aragão, etc., e por suas gentes (…), sejam e fiquem para os ditos  senhores rei e rainha de Castela e de Aragão, etc., e para seus sucessores e seus reinos para sempre jamais; como é e há-de ser ser seu o que é ou for achado além da dita raia das ditas 370 léguas que ficam para suas altezas como dito é (…).”
In Tratado de Tordesilhas e Outros Documentos, Biblioteca da Expansão Portuguesa, publicações Alfa, 1989.

Veja-se um pequeno vídeo sobre a Assinatura do Tratado de Tordesilhas