ROTA DA COTOVIA

Memórias do noviciado da Cotovia em diversas instituições de Lisboa

Ao espólio do noviciado da Cotovia da Companhia de Jesus que se encontra no Museu Nacional de História Natural e da Ciência poderíamos adicionar pinturas e esculturas da igreja do antigo noviciado, mas, devido a uma série de incêndios e cataclismos que lavraram este edifício da Rua da Escola Politécnica, perderam-se no fogo ou foram salvas e recuperadas por outras entidades, encontrando-se atualmente a embelezar igrejas ou museus nacionais.

Pelos espaços dos Museus da Politécnica passaram as seguintes instituições de ensino onde lamentavelmente os cataclismos e incêndios foram, como se disse, uma constante:

  • Noviciado da Cotovia (13 de Junho 1619)

1694 – 1º Incêndio

1731 – 2º Incêndio – arde a Capela particular de um dos financiadores do noviciado, Lourenço Lombardo.

1755 – Terramoto

  • Colégio dos Nobres (7 de Março 1761)
  • Escola Politécnica (11 de Janeiro 1837)

1843 (22 de Abril) – 3º incêndio – fica totalmente destruída a igreja.

  • Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) (Março 1911)

1978 – 4º Incêndio

Assim, num percurso que parte do MNHNC, edifício com uma longa história mas com um presente que ainda tem muito por desvendar e para transmitir à população, vamos descobrir o passado da primeira Casa de Provação da Companhia de Jesus na Província Portuguesa, através do seu espólio disperso por diversas instituições que acolheram estas peças e as expuseram ao público como peças de culto ou de interesse artístico. 

Na sacristia da igreja de S. Mamede, na rua da Escola Politécnica, encontra-se uma pintura de Domingos da Cunha. Sendo a temática mariana um dos temas melhor aceites no período pós Concílio de Trento e também aquele que mais suscitou o interesse dos pintores europeus, esta Visitação não foge à regra tridentina. Iconograficamente encontra-se enquadrada ao centro por Maria SSª que cumprimenta a sua prima Isabel. À esquerda do observador, São José faz festas a um cão. Atrás dele apruma-se um retrato seguido de outra figura feminina. Do lado direito Zacarias (sacerdote do Templo de Jerusalém, pai de João Baptista e esposo de Isabel) avança de braços abertos, tendo junto de si outro figurante, com a mão em esquisita posição e desenho. Atrás de si outra figura feminina. A figura do retrato contrasta na comparação visualmente estabelecida com as outras idealizadas. Será o autorretrato de Cabrinha, enroupado de negro, com colarinho típico dobrado sobre a gola, no gosto elegante da época. Pensa-se que Domingos da Cunha se introduziu como personagem nesta pintura devido aos traços fisionómicos algo bexigosos e orientalizantes de uma figura.

Pintura do século XVII (mais ou menos 1630) que, segundo Vítor Serrão e para o jesuíta Costa Lima pertenceu ao “…extinto Colégio jesuítico da Cotovia…”. Joaquim O. Caetano em O púlpito e a imagem: os jesuítas e a arte refere que Domingos da Cunha executou “…algumas pinturas para o Noviciado da Cotovia, entre as quais uma «Visitação» que se encontra na Sacristia da Igreja de S. Mamede…”. Também Costa Lima assegura que “…o quadro fora da Politécnica, antigo Noviciado dos jesuítas, onde o famoso e santo artista reparou a sua vida boémia…”[1].

Visitação (Sacristia da Igreja de S. Mamede)

Datada do século XVIII d.C., encontra-se na nave desta igreja de S. Mamede uma escultura de Nossa Senhora da Conceição, de José de Almeida (1708-1769), também ela pertencente ao antigo noviciado da Cotovia. José de Almeida foi mestre de Machado de Castro na escultura em mármore. Podemos ver peças deste escultor no palácio de Mafra (presépio, conjunto escultórico relativo aos mártires de Marrocos) e na igreja de S. Domingos de Benfica. Discípulo de Carlo Monaldi esculpiu ainda uma Senhora da Vitória e uma Senhora das Virtudes para a igreja de S. Domingos, em Lisboa, e um Cristo e  uns Anjos de Adoração para o Palácio-Convento de Mafra; é-lhe atribuído o trabalho de talha dourada no Coche de D. João V; podemos também ver um Santo Onofre no Museu Nacional de Arte Antiga. Hábil escultor em pedra José de Almeida estudara em Roma, protegido e sustentado por D. João V.

A escultura de Nossa Senhora da Conceição encontra-se iconograficamente presentada com equilíbrio e síntese no tratamento volumétrico, com serenidade expressiva e gestual. Dinâmico contraposto dos membros inferiores. Assenta num esferoide, que tem representadas nuvens e a rodeá-la estão quatro cabeças de anjos.

Nossa Senhora da Conceição (nave da Igreja de S. Mamede)

No largo Trindade Coelho encontramos a igreja de S. Roque, igreja e casa Professa da Companhia de Jesus durante mais de 200 anos, antes de os Jesuítas terem sido expulsos do país no ano de 1759. Primeira igreja em Portugal e uma das primeiras igrejas jesuítas em todo o mundo.  Aqui, na sua sacristia vamos encontrar algumas pinturas de Domingos da Cunha que, segundo alguns historiadores poderiam ter pertencido ao noviciado da Cotovia.

São catorze os quadros que se encontram colocados sobre o arcaz da sacristia da igreja de S. Roque, acima da série xaveriana de André Reinoso, do século XVIII e que descrevem o Ciclo da Vida de Santo Inácio de Loyola. Para Vítor Serrão e Reynaldo dos Santos, esta série da sacristia é de nível inferior à da nave da Igreja, mostrando ser obra de colaborações díspares, como também que estava mal montada sobre o arcaz[2]. Possivelmente foram aí colocados pós terramoto, com a consequente destruição do noviciado da Cotovia, pois o espaço onde foram colocados não parece adaptado à série.

Para pintar estas telas o pintor Domingos da Cunha utilizou as gravuras da Vita Beattii Patris Ignatii Loyolae Religionis Societatis Iesu Fundatoris ad Vivum Expressa ex ea quam, de P. Petrus Ribadeneyra, publicada em 1610 por Cornelis Galle, em Antuérpia, com dezasseis buris de Cornelis e de Theodore Galle, de Adrien e Johann Collaert e de Charles de Mallery[3]. Nota-se outras influências ao nível estético, com alguma modernidade, saídas dos modelos caravagescos. É visível ao nível pictórico um desequilíbrio, mostrando que, possivelmente, um colaborador seu tenha também participado nesta construção[4].

Luís Moura Sobral estudou o ciclo hagiográfico da sacristia de S. Roque e concluiu o seguinte acerca dos painéis da Vida de Santo Inácio: estes não estão dispostos seguindo uma narrativa biográfica; dois dos quadros repetem o mesmo episódio; oito das telas foram feitas cerca de 1619, com legendas na banda inferior em castelhano e com figuras de pequena escala; as restantes seis pinturas que se encontram enquadradas entre os anos de 1640-44 tem figuras monumentais, com efeitos tenebristas e alguns exageros na representação anatómica e estão legendadas na banda inferior em português. Estas, para Moura Sobral e Joaquim Caetano são as verdadeiras obras de Domingos da Cunha, com semelhanças de composição e de fatura (exceto aquela onde Santo Inácio ouvindo um sermão lhe saem raios da cabeça, que se encontra mais perto das telas da nave da igreja, também elas de Domingos da Cunha), executadas para S. Roque ou reaproveitadas do Noviciado da Cotovia[5].

Nas peças cedidas ao Museu Arqueológico do Carmo pela Escola Politécnica[6] encontram-se três peças do espólio da Cotovia: uma escultura de São Estanislau Kostka (padroeiro dos noviços); uma de São Luís Gonzaga (padroeiro da juventude); e uma Inscrição funerária e votiva de Luís Correia.

São Estanislau Kostka e São Luís Gonzaga (Museu de Arqueologia do Carmo)

A estatuária religiosa em pedra possui uma função ornamental e identificativa. Trata-se de imaginária integrada em nichos abertos nas fachadas principais dos edifícios religiosos, aludindo ao orago do templo ou ao universo devocional da comunidade religiosa. Neste caso específico encontramo-nos iconograficamente perante dois santos da Companhia de Jesus.  São Estanislau Kostka (padroeiro dos noviços) surge-nos, iconograficamente, sustentando um menino nos seus braços, levando-nos ao encontro com sua história onde se conta que, estando doente e durante um sonho, viu a Virgem Maria colocar o Menino Jesus em seus braços. Nossa Senhora, na sua aparição, convidou-o a ingressar na Companhia de Jesus. A indumentária de ambas as esculturas é semelhante, estando ambos vestidos como membros da Companhia de Jesus, isto é, com sobrepeliz[7]. São Luís Gonzaga (padroeiro da juventude)[8] tem como atributos um lírio, um crânio, uma disciplina ou um crucifixo. Um desses objetos, agora desaparecido da sua mão esquerda era por ele dado a contemplar. Imagens que física e estilisticamente se aproximam uma da outra, onde a desproporção pode igualmente ser observada e sendo visível ao nível da cabeça, parecendo à vista desarmada um restauro quase desastroso. Cultiva-se o gosto pelo gesto e pela exploração do momento determinante da ação. Mas se olharmos estas figuras num plano mais elevado, esta desproporção ameniza-se. Ambas as peças estão sobre uma base do mesmo material mas também ela provocando alguma dinâmica.

Por fim, vamos encontrar no Museu Arqueológico do Carmo uma Inscrição funerária e votiva que se encontrava na Capela de São Luís Gonzaga, no corpo da igreja, do lado do Evangelho. Esta capela tinha um altar com colunas de madeira dourada e capitéis. No retábulo havia uma pintura em pano com a imagem de São Luís Gonzaga, e uma imagem do mesmo santo de três palmos de altura, com resplendor de prata. Numa mão tinha um ramo de açucenas, em tecido, e à cintura um coração de prata[9]. Comprada ao noviciado, com escritura de 30 de Junho de 1666, por Luís Correia da Paz com intenção de ter aí a sua jazida. O seu filho morreu em 1665 e um ano depois foi aí enterrado.

Inscrição funerária e votiva (MAC)

Encaixada em uma parede da capela existia uma lápide que tinha inscrito o seguinte:

[Á EXALTAÇÃO DE CHRISTO/ DEDICADA ESTA CAPELA AO/ B. LUVIS GONZAGA POR LUIS COR/ REIA Q.DO A COMPRO A ESTE/ COLLEGIO PARA SEV JAZIGO E DE/ TODOS OS DESCENDENTES E AS/ CENDENTES DE SEV PAI FER/ NÃO CORREIA E SVA MAI BRANCA/ DA PAZ E IAZ NELLA SEV FILHO LV/ IS CORREIA DE SOVSA Q. FALECEV A/ 21 DE ABRIL DE 1665][10]

Panorama de Lisboa e Partida de S. Francisco Xavier para a Índia.   -   Autor desconhecido - Séc. XVIII. Noviciado da Cotovia, MNAA.Mais distante deste circuito do espólio perdido do noviciado da Cotovia vamos encontrar no Museu Nacional de Arte Antiga duas pinturas monumentais desta dita casa de provação.

A pintura a óleo sobre tela do Panorama de Lisboa e partida de S. Francisco Xavier para a Índia, atribuída primeiro a Domingos da Cunha, artista jesuíta e noviço da Cotovia cuja atividade se desenvolveu até aos finais da primeira metade do século XVII (1644), depois a Gaspar Simões dos Reis e, mais recentemente ao pintor José Pinhão de Matos (165? – 175?). Esta pintura representa a vista panorâmica de Lisboa na segunda metade do século XVII, abarcando o Terreiro do Trigo a Este, até à Cruz Quebrada (já fora dos limites da cidade) a Oeste, passando pela Rocha do Conde de Óbidos e Belém, onde se destaca o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém, enquanto para o interior, ainda se consegue visualizar o Paço da Alcáçova, a Sé e São Vicente de Fora e a Oeste uma conjunto de conventos. São reproduzidos detalhadamente toda a zona ribeirinha e mais precisamente o mercado da Ribeira Velha, a Casa da Índia e o Terreiro do Paço devido à perspetiva vinda do rio Tejo, que se encontra cheio de caravelas e naus nacionais e Estrangeiras. A esta Vista de Lisboa no século XVII, é acrescida a partida para Goa de São Francisco Xavier corrido em Abril de 1541[11]. O pintor pinta os diversos momentos do acontecimento: a saída do Santo para a passarela que dá acesso ao Rio, o embarque na galeota e o trajeto desta que se dirige para a nau da armada da Índia. Na parte superior da composição está representada a cena de despedida de Francisco de Xavier ao rei D. João III, envolta por grinaldas suspensas por dois anjos. Um terceiro anjo, no ângulo superior esquerdo desenrola um pergaminho onde se pode ler: “Acceptis a Joane III / pontificis literis / nuntius apostolicus / in Indiam solvit / Santus Francisco Xavierius. /”. Depois de ter recebido as cartas pontifícias das mãos de D. João III, o Núncio apostólico São Francisco Xavier parte para a Índia.

D. João III e o núncio apostólico da Índia, ou A partida de São Francisco Xavier em 1541,
José Pinhão de Mattos, c. 1730.
MNAA

Outra pintura que se encontra referenciada como pertencente ao noviciado está atualmente em exposição neste Museu. É uma Vista Perspectica de Goa e Terras Próximas no Século XVII[12], atribuída erradamente ao retratista Domingos de Gusmão que “… as pintou na casa de provação dos jesuítas”, como é referido num ofício expedido pelo Diretor da FCUL ao Reitor da Universidade de Lisboa em 23 de Julho de 1947 [13]. Datada do século XVIII (1715 d.C. – 1765 d.C.), esta vista de Goa, tal como o Panorama de Lisboa foram encontrados nas coleções da Escola Politécnica em 1864, onde fazia parte de um conjunto de pinturas evocativas da presença de São Francisco Xavier no Oriente.

Vista Perspectica de Goa e Terras Próximas
José Pinhão de Matos
MNAA

Todas estas peças de arte que pertenceram ao noviciado da Cotovia traduzem bem a forma de sentir dos seus ocupantes e da Ordem que Santo Inácio iniciou, onde cada homem é constituído por um composto corpo e alma, isto é, “uniformização” do indivíduo, com “purificação do corpo” e “disciplina da alma”. Este espólio traduz o universo devocional desta comunidade religiosa, utilizado na prática cultual e devocional ou na estimulação do espírito missionário. No gosto dos jesuítas pela Gesamtkunstwerk ou obra de arte total vislumbra-se os princípios estéticos vigentes no mundo católico dos séculos XVI, XVII e XVIII, isto é, pós reforma católica.


[1] Vítor Serrão, A Pintura Proto-barroca em Portugal, 1612-1657, Coimbra: [s.n.], 1992, p. 133; J. da Costa Lima, “Artistas velhos e novos”, in Brotéria cultural, vol. XXXII, 1941, p.408; Joaquim Oliveira Caetano, O púlpito e a imagem: os jesuítas e a arte, Lisboa: Museu de São Roque, 1996, p.23 e 54; J. da Costa Lima, op. cit., p.408.

[2] Vítor Serrão, A Pintura Proto-barroca em Portugal, 1612-1657, Coimbra: [s.n.], 1992, p. 140. Vítor Serrão observa que Reynaldo dos Santos também já tinha verificado que esta série Inaciana revelava uma série de incongruências. Ver inclusive João Barreira, Arte Portuguesa, Lisboa: [s.n.], 1963.

[3] Luís de Moura Sobral, “Espiritualidade e Propaganda nos programas Iconográficos dos jesuítas portugueses”, In A Companhia de Jesus na Península Ibérica nos sécs. XVI e XVII : Espiritualidade e cultura : actas do Colóquio Internacional, Maio 2004, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Instituto de Cultura Portuguesa; Universidade do Porto, Centro Inter-universitário de História da Espiritualidade, 2004, p.402.

[4] Ibidem., p. 141.

[5]Ibidem, p. 401; Joaquim Oliveira Caetano, Pintura, Colecção de Pintura da Misericórdia de Lisboa, Século XVI ao Século XX, Tomo I, Lisboa : S.C.M., 1998; Ibidem, p. 54.

[6] Informação recolhida em José Morais Arnaud (coord.); Carla Varela Fernandes (coord.); Vitória Mesquita (coord.), Construindo a Memória: As Colecções do Museu Arqueológico do Carmo, Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, 2005.

[7] A Companhia de Jesus ordenou o uso da sobrepeliz durante o sermão e nas lições sagradas, daí surgirem estas duas estátuas com este tipo de indumentária.

[8] São Luís Gonzaga é considerado “Patrono da Juventude”. Seu corpo repousa na Igreja de Santo Inácio, em Roma. São Luís Gonzaga escreveu: “Também os príncipes são pó como os pobres: talvez, cinzas mais fedidas”. Após ter recebido a primeira comunhão das mãos de São Carlos Borromeu, decidiu-se pela vida religiosa, entrando para a Companhia de Jesus.

[9] Raul Lino, Luís Silveira, A. H. de Oliveira Marques, Documentos para a história da arte em Portugal, 4º vol., Lisboa: F.C.G., 1969-1991.

[10] Nobiliário [Manuscrito de Rangel de Macedo: Título de Correias e Pazes]. In PORTUGAL. Biblioteca Nacional de Portugal, Inventário : secção XIII : manuscriptos : collecção pombalina, Lisboa: BN, 1889, nº 272 a 276; ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO, Inventário do Cartório do Colégio dos Nobres, Liv. 71, p. 16, nº 3.

[11] Maria Helena Mendes Pinto, “Panorama de Lisbonne at départ de Saint François Xavier pour l’Inde”, in Via Orientalis (catálogo da exposição), Bruxelles: Europalia, 1991.

[12] Idem, “Panorama de Goa et de ses environs”, in Via Orientalis (catálogo da exposição). Bruxelles: Europalia, 1991.

[13] Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa – MUHNAC. Cópia de ofício expedido pelo Diretor da FCUL ao Reitor da Universidade de Lisboa em 23 de Julho de 1947. Lv. 718.

In VEIGA, Francisca Branco. Noviciado da Cotovia: O Passado dos Museus da Politécnica 1619-1759. Dissertação (Mestrado em Património Cultural) – Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2009.

O teto da Sacristia da Igreja do Colégio do Espírito Santo (Évora)

O Colégio do Espírito Santo, da Companhia de Jesus, foi construído na segunda metade do século XVI, mais precisamente em 1559. Sete anos mais tarde, em 1566, teve início a construção da Igreja. Partiu da vontade do Cardeal-Infante D. Henrique, então Arcebispo de Évora, levar a toda a população a voz dos famosos pregadores daquele tempo.

A obra ficou concluída em 1572, mas a sagração solene só aconteceria em 1574, Domingo de Páscoa. A Igreja do Espírito Santo é o primeiro exemplo do chamado “estilo chão” e serviu de modelo a outras igrejas de colégios jesuítas portugueses.

A entrada na igreja é feita por um pórtico, constituído por sete arcadas redondas de granito.

O interior, de planta retangular e nave é única, é em cruz latina. Existem dez capelas laterais, destacando-se as seguintes: Capela de Santo Inácio de Loyola, Capela do Senhor Jesus dos Queimados e Capela da Irmandade do Senhor Jesus dos Passos da Cidade de Évora.

No cruzeiro, do lado esquerdo, encontra-se uma arca sepulcral mandada construir pelo Cardeal D. Henrique, que se encontra vazia uma vez que o mesmo está sepultado no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa.

Os doze painéis do teto da sacristia contam episódios da vida de Santo Inácio de Loyola.

Sacristia da Igreja do Colégio do Espírito Santo, Évora (Teto)

Túlio Espanca descreve o teto do seguinte modo:

«É de planta rectangular com abóbada de berço ornamentada por interessante composição de pintura mural datada de 1599, de altíssimo valor iconográfico por representar, em doze painéis de recorte geométrico e desenhos diferentes, episódios da vida de Santo Inácio de Loyola concebidos artisticamente antes da sua canonização, facto que se verificou em 1622, no pontificado de Gregório XV. O apainelado geral, dividido por retablitos florais com pingentes de relevo, apresenta outros motivos ornamentais fito e antropomórficos concebidos no gosto híbrido do classicismo e do barroco, com realce para os pormenores chineses que, talvez neste conjunto, se representaram pela primeira vez na pintura portuguesa».[1]

Os doze pequenos quadros do teto que procuram retratar episódios importantes da vida de Inácio de Loyola encontram-se rodeados por um medalhão com o emblema da Companhia de Jesus.

Trata-se, por certo, de um conjunto de grande importância iconográfica pela originalidade dos seus ornamentos decorativos de pintura a fresco, tão enraizada no Alentejo, e pelo facto deste ciclo iconográfico ter sido elaborado dez anos antes da beatificação de Inácio de Loyola, fundador desta Ordem Religiosa e vinte e três da sua canonização, fazendo parte, deste modo, de uma primeira campanha de propaganda para a sua canonização.

O teto da sacristia do Colégio do Espírito Santo reflete o gosto dos jesuítas pela Gesamtkunstwerk ou obra de arte total, associado a um programa cultual e de doutrinação que teve como consequência a criação de uma arte religiosa muito própria desta Ordem nos diversos níveis artístico. São um exemplo da importância que a Companhia de Jesus teve em Portugal como condutora dos princípios da Contrarreforma, utilizando a imagem para induzir os crentes na mensagem católica.

A necessitar de urgente intervenção, foi realizado um concurso público para a salvaguarda e valorização da igreja do Espírito Santo, “testemunho essencial da arquitetura, arte e missão” dos Jesuítas, publicado em Diário da República, a 28 de outubro de 2019[2].

Em modo de remate, após a expulsão dos Jesuítas, por Pombal, em 1759, e por consequência o encerramento da Universidade de Évora, a igreja foi entregue aos frades da Ordem Terceira Regular de São Francisco, até 1834 (expulsão das restantes ordens religiosas de Portugal). De realçar que, no dia 10 de setembro de 1832, D. Miguel entregou, novamente, o Colégio do Espírito Santo à Companhia de Jesus, através de um pedido do Arcebispo de Évora Fortunato de São Boaventura, mas os jesuítas nunca chegaram a ocupar este espaço devido ao ambiente de guerra civil existente no território português[3].

Igreja do Colégio do Espírito Santo, Évora (interior)

Fotografias da autora do blogue.

[1] ESPANCA, Júlio – Inventário Artístico de Portugal – Concelho de Évora, vol. I. Lisboa: Academia Nacional de Belas Artes, 1966, p. 87.

[2] CB/OC – “Évora: Seminário Maior assinou contrato para requalificação da igreja do Espírito Santo”. In Ecclesia, 7 de maio de 2020. [Consultado 21 maio de 2020]. Disponível na internet em: https://agencia.ecclesia.pt/portal/evora-seminario-maior-assinou-contrato-para-requalificacao-da-igreja-do-espirito-santo/

[3] VEIGA, Francisca – A Restauração da Companhia de Jesus em Portugal 1828-1834: O breve regresso no reinado de D. Miguel. In Tese elaborada para obtenção do grau de Doutor em História, na especialidade de História Contemporânea, 2019, p. 264.

Sobre a história do Colégio do Espírito Santo, de Évora veja-se, VAZ, Francisco A. L. – “O Ensino no Colégio do Espírito Santo – De Pombal à Fundação do Liceu (1750-1841)”.  In Universidade de Évora (1559-2009) – 450 Anos de Modernidade Educativa, 2012, pp. .513 – 530; Idem – “O Ensino no Colégio do Espírito Santo – Desde a Expulsão dos Jesuítas à Fundação do Liceu”. In REVUE – Revista da Universidade de Évora, Ano VI, nos 10-11 (vol.I), pp. 146 – 159.

Convento da Cartuxa, Laveiras (Oeiras)

No passado sábado, dia 10 de abril, participei numa visita à Quinta da Cartuxa, antes do início dos trabalhos que irão iniciar-se em breve. O Município de Oeiras formalizou, no passado dia 17 de fevereiro, a transferência da posse da Quinta da Cartuxa para o Município, após anos de tentativas e negociações com o Estado.

Aqui vos deixo uma nótula brévis da história do espaço conventual e a minha reportagem fotográfica do estado em que se encontra o espaço neste momento, esperando que melhores dia virão!

D. Simôa Godinha, filha de um dos primeiros colonos de S. Tomé e Príncipe, casada com o fidalgo D. Luis de Almeida, morre em Lisboa em 1594, deixando à Santa Casa da Misericórdia a sua herança. Entre outros bens, deixa uma quinta em Laveiras para a fundação de um convento. A partir do início do século XVII a Ordem cartusiana, passaria a dispôr de uma segunda casa em Portugal (a primeira foi em Évora), em Laveiras, concelho de Oeiras.

A Cartuxa de Laveiras também será conhecida como Cartuxa de Santa Maria do Vale da Misericórdia (“Sanctae Mariae Vallis Misericordiae”), Cartuxa de Nossa Senhora do Vale da Misericórdia, Cartuxa de Lisboa e Mosteiro de São Bruno.

Estudo para o Panorama de Lisboa, Domingos Sequeira. Em primeiro plano vê-se a ponte sobre a ribeira de Barcarena (dos Ossos) e a igreja da Cartuxa de Laveiras, seguidos da Quinta Real de Caxias. Em segundo plano, uma grande quantidade de navios e barcos sobem o Tejo sobre o cenário da Trafaria e do Cachopo sul ou Alpeidão. Ao fundo, na linha de horizonte, distingue-se o Cabo Espichel. In Revista Municipal, 4º Trimentre, 1941, pp. 14-18.

A vida da Ordem Cartusiana  assentava em princípios que impunham a solidão e o silêncio continuado, o jejum, a abstinência de carne, a clausura perpétua, o uso constante do cilício e a oração durante a maior parte do dia e da noite. Estes princípios eram seguidos com rigor. Os padres comunicavam entre si uma vez por semana passando a maior parte da jornada em clausura nas suas celas, onde rezavam, estudavam e tomavam as refeições, deslocando-se diariamente apenas à igreja e semanalmente ao refeitório. Assim, a cela de um monge cartuxo era constituída por mais do que um compartimento: ela continha em geral entre quatro a seis divisões, podendo ser considerada uma célula residencial autossuficiente com, no mínimo, um quarto, escritório, capela e jardim individual.

Revista Municipal, 4º Trimentre, 1941, pp. 14-18.

Estas celas formavam um módulo que se repetia em redor de um claustro principal de dimensão invulgarmente grande. O claustro, chamado “grande” ou “maior”, erguia-se tipicamente por trás da igreja. Nos flancos do templo, dispunham-se em geral outros claustros menores, que serviam outros compartimentos – o refeitório dos irmãos leigos, o dormitório destes, a sala capitular, a sacristia. A igreja é, em geral, de pequena dimensão, por servir uma comunidade relativamente reduzida e porque a assistência de público é pouco importante. A este era destinada a primeira parte da nave, junto ao acesso do adro; numa faixa intermédia ficavam os irmãos, e junto ao altar, de área mais generosa, os padres.

Em 1833, com a extinção das Ordens Religiosas pelo regime liberal, os monges da Cartuxa de Laveiras puseram-se em fuga, abandonando a clausura e seguindo a pé pelo país em busca de porto seguro. Na minha tese de doutoramento escrevi o seguinte sobre este momento:

«Com a entrada do exército do Duque da Terceira em Lisboa, os monges da Cartuxa de Laveiras, que ajudaram os missionários jesuítas no contacto com o povo, decidem abandonar o mosteiro e juntar-se ao Cortejo do Tesouro Real de Queluz, aos «Paisanos, Mulheres, Crianças, Frades»[1], e rumaram a Coimbra onde se encontrava a Corte. Pelo caminho encontraram já em debandada os franciscanos do Varatojo, os cistercienses de Alcobaça e os arrábidos de Mafra[2]». [3]

Já a Cartuxa de Évora fechou no ano seguinte, em 1834, após o fecho compulsivo e a expulsão dos monges da congregação.

Pelo convento da Cartuxa de Laveiras passou o pintor português Domingos Sequeira, que ingressou em 1796 e aí permaneceu até 1802.

No seu recolhimento pintou uma série de cinco telas de grande dimensão com passos da vida de S. Bruno (fundador e patrono dos Cartuxos) e de outros santos eremitas (Santo Onofre, S. Paulo e Santo Antão). O conjunto encontra-se disperso.

Telas com temática cartuxa da Igreja lisboeta de Santa Cruz do Castelo. Representam um bispo com o hábito cartuxo e sete mártires da perseguição levada a efeito pela reforma de Henrique VIII, todos com o hábito da Ordem. Seria um grupo de telas idêntico a este que se encontraria na Cartuxa de Laveiras.

Domingos Sequeira foi nomeado pintor da corte em 1802 e codiretor da empreitada de pintura do Palácio da Ajuda.

Domingos António de Sequeira.
(Lisboa, 10 de Março de 1768 – Roma, 8 de Março de 1837)

 

Autor    Domingos Sequeira
Data      1799-1800
Técnica               Pintura a óleo sobre tela
Dimensões         132 cm  × 192 cm
Localização        Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa

São Bruno em oração é uma pintura a óleo sobre tela pintada por Domingos Sequeira em 1799-1800, obra que decorou inicialmente o Convento da Cartuxa (Caxias), perto de Oeiras, tendo posteriormente sido transferida para o Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.

Descrição da pintura: São Bruno encontra-se prostrado em oração no interior de uma gruta, lugar apropriado para a oração, tendo à sua frente um livro de orações aberto, e ao seu lado um crucifixo assente sobre dois livros fechados, uma caveira e uma lâmpada acesa. Ao fundo vê-se uma bilha e uma tigela.

[1] COSTA, Francisco de Paula Ferreira da – Memórias de um miguelista: 1833-1834, p. 24.

[2]GOMES, J. Pinharanda A Ordem da Cartuxa em Portugal: Ensaio da Monografia Histórica, pref. dos Cartuxos de Scala Coeli. Salzburg: Institut für Anglistik und Amerikanistik, 2004, pp. 172-175.

[3] VEIGA, Francisca Branco – A Restauração da Companhia de Jesus em Portugal 1828-1834: O breve regresso no reinado de D. Miguel. Tese elaborada para obtenção do grau de Doutor em História, na especialidade de História Contemporânea, 2019.

VISITA GUIADA 10 ABR 2021

‎‎Oratório‎‎ de Páscoa – Johann ‎‎Sebastian Bach (BWV 249)‎‎

Ressurreição
Autor  Pieter Paul Rubens
Data  1616 cerca
Técnica  óleo sobre tela
Dimensão  183×155 cm
Localização  Palazzo Pitti, Firenze

O termo oratório provém da palavra latina oratio e designa a ação de orar, mas também se refere ao local onde esta é realizada.

O Oratório de Páscoa pertence a um ciclo de três oratórias destinadas às datas mais importantes da liturgia cristã, que inclui para além da Oratória de Páscoa (1725), a Oratória da Ascensão(1735) e a Oratória de Natal, esta composta para o período compreendido entre o Natal de 1734 e a Festa da Epifania de 1735 (quando Bach era director musical e kantor da Igreja de São Tomás, em Leibniz). Esta colectânea de música foi organizada pelo próprio já perto dos seus cinquenta anos.

Igreja de São Tomás, Leipzig

O ‎‎ ‎‎Oratório da Páscoa‎‎ ‎‎ (em alemão: ‎‎Oster-Oratório‎‎), ‎‎ ‎‎BWV‎‎ ‎‎ ‎‎249‎‎, é um ‎‎oratório‎‎ de Johann ‎‎Sebastian Bach‎‎, que começa por ‎‎ ‎‎Kommt, eilet und laufet‎‎ ‎‎ (“Venha, apresse-se e corra”). Bach compôs-lo na cidade de  ‎‎Leipzig‎‎ e apresentou-o pela primeira vez no dia 1 de abril de 1725.‎

A explosão de luz e alegria da ressurreição, no Oratório da Páscoa, chega após dois dias de tristeza e das trevas da Paixão de Cristo, na sexta-feira santa.

O Oratório da Páscoa é baseado num texto, provavelmente escrito pelo alemão Christian Friedrich Henrici, e seria cantado por quatro personagens: Maria Madalena, Maria (mãe de Tiago) e os discípulos Pedro e João. O assunto do oratório é referente ao Domingo de Páscoa, quando Pedro e João correm para o túmulo de Jesus e o encontram vazio. Maria Madalena, que se encontra junto de Maria (mãe de Tiago), informa-os que Cristo ressuscitou.

O Coro final é uma ação de graças ao Senhor.

Bach – Easter Oratorio: Kommt, eilet und laufet BWV 249 – Van Veldhoven
Netherlands Bach Society