Memórias do noviciado da Cotovia em diversas instituições de Lisboa
Ao espólio do noviciado da Cotovia da Companhia de Jesus que se encontra no Museu Nacional de História Natural e da Ciência poderíamos adicionar pinturas e esculturas da igreja do antigo noviciado, mas, devido a uma série de incêndios e cataclismos que lavraram este edifício da Rua da Escola Politécnica, perderam-se no fogo ou foram salvas e recuperadas por outras entidades, encontrando-se atualmente a embelezar igrejas ou museus nacionais.
Pelos espaços dos Museus da Politécnica passaram as seguintes instituições de ensino onde lamentavelmente os cataclismos e incêndios foram, como se disse, uma constante:
- Noviciado da Cotovia (13 de Junho 1619)
1694 – 1º Incêndio
1731 – 2º Incêndio – arde a Capela particular de um dos financiadores do noviciado, Lourenço Lombardo.
1755 – Terramoto
- Colégio dos Nobres (7 de Março 1761)
- Escola Politécnica (11 de Janeiro 1837)
1843 (22 de Abril) – 3º incêndio – fica totalmente destruída a igreja.
- Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) (Março 1911)
1978 – 4º Incêndio
Assim, num percurso que parte do MNHNC, edifício com uma longa história mas com um presente que ainda tem muito por desvendar e para transmitir à população, vamos descobrir o passado da primeira Casa de Provação da Companhia de Jesus na Província Portuguesa, através do seu espólio disperso por diversas instituições que acolheram estas peças e as expuseram ao público como peças de culto ou de interesse artístico.

Na sacristia da igreja de S. Mamede, na rua da Escola Politécnica, encontra-se uma pintura de Domingos da Cunha. Sendo a temática mariana um dos temas melhor aceites no período pós Concílio de Trento e também aquele que mais suscitou o interesse dos pintores europeus, esta Visitação não foge à regra tridentina. Iconograficamente encontra-se enquadrada ao centro por Maria SSª que cumprimenta a sua prima Isabel. À esquerda do observador, São José faz festas a um cão. Atrás dele apruma-se um retrato seguido de outra figura feminina. Do lado direito Zacarias (sacerdote do Templo de Jerusalém, pai de João Baptista e esposo de Isabel) avança de braços abertos, tendo junto de si outro figurante, com a mão em esquisita posição e desenho. Atrás de si outra figura feminina. A figura do retrato contrasta na comparação visualmente estabelecida com as outras idealizadas. Será o autorretrato de Cabrinha, enroupado de negro, com colarinho típico dobrado sobre a gola, no gosto elegante da época. Pensa-se que Domingos da Cunha se introduziu como personagem nesta pintura devido aos traços fisionómicos algo bexigosos e orientalizantes de uma figura.
Pintura do século XVII (mais ou menos 1630) que, segundo Vítor Serrão e para o jesuíta Costa Lima pertenceu ao “…extinto Colégio jesuítico da Cotovia…”. Joaquim O. Caetano em O púlpito e a imagem: os jesuítas e a arte refere que Domingos da Cunha executou “…algumas pinturas para o Noviciado da Cotovia, entre as quais uma «Visitação» que se encontra na Sacristia da Igreja de S. Mamede…”. Também Costa Lima assegura que “…o quadro fora da Politécnica, antigo Noviciado dos jesuítas, onde o famoso e santo artista reparou a sua vida boémia…”[1].

Datada do século XVIII d.C., encontra-se na nave desta igreja de S. Mamede uma escultura de Nossa Senhora da Conceição, de José de Almeida (1708-1769), também ela pertencente ao antigo noviciado da Cotovia. José de Almeida foi mestre de Machado de Castro na escultura em mármore. Podemos ver peças deste escultor no palácio de Mafra (presépio, conjunto escultórico relativo aos mártires de Marrocos) e na igreja de S. Domingos de Benfica. Discípulo de Carlo Monaldi esculpiu ainda uma Senhora da Vitória e uma Senhora das Virtudes para a igreja de S. Domingos, em Lisboa, e um Cristo e uns Anjos de Adoração para o Palácio-Convento de Mafra; é-lhe atribuído o trabalho de talha dourada no Coche de D. João V; podemos também ver um Santo Onofre no Museu Nacional de Arte Antiga. Hábil escultor em pedra José de Almeida estudara em Roma, protegido e sustentado por D. João V.
A escultura de Nossa Senhora da Conceição encontra-se iconograficamente presentada com equilíbrio e síntese no tratamento volumétrico, com serenidade expressiva e gestual. Dinâmico contraposto dos membros inferiores. Assenta num esferoide, que tem representadas nuvens e a rodeá-la estão quatro cabeças de anjos.

No largo Trindade Coelho encontramos a igreja de S. Roque, igreja e casa Professa da Companhia de Jesus durante mais de 200 anos, antes de os Jesuítas terem sido expulsos do país no ano de 1759. Primeira igreja em Portugal e uma das primeiras igrejas jesuítas em todo o mundo. Aqui, na sua sacristia vamos encontrar algumas pinturas de Domingos da Cunha que, segundo alguns historiadores poderiam ter pertencido ao noviciado da Cotovia.
São catorze os quadros que se encontram colocados sobre o arcaz da sacristia da igreja de S. Roque, acima da série xaveriana de André Reinoso, do século XVIII e que descrevem o Ciclo da Vida de Santo Inácio de Loyola. Para Vítor Serrão e Reynaldo dos Santos, esta série da sacristia é de nível inferior à da nave da Igreja, mostrando ser obra de colaborações díspares, como também que estava mal montada sobre o arcaz[2]. Possivelmente foram aí colocados pós terramoto, com a consequente destruição do noviciado da Cotovia, pois o espaço onde foram colocados não parece adaptado à série.
Para pintar estas telas o pintor Domingos da Cunha utilizou as gravuras da Vita Beattii Patris Ignatii Loyolae Religionis Societatis Iesu Fundatoris ad Vivum Expressa ex ea quam, de P. Petrus Ribadeneyra, publicada em 1610 por Cornelis Galle, em Antuérpia, com dezasseis buris de Cornelis e de Theodore Galle, de Adrien e Johann Collaert e de Charles de Mallery[3]. Nota-se outras influências ao nível estético, com alguma modernidade, saídas dos modelos caravagescos. É visível ao nível pictórico um desequilíbrio, mostrando que, possivelmente, um colaborador seu tenha também participado nesta construção[4].
Luís Moura Sobral estudou o ciclo hagiográfico da sacristia de S. Roque e concluiu o seguinte acerca dos painéis da Vida de Santo Inácio: estes não estão dispostos seguindo uma narrativa biográfica; dois dos quadros repetem o mesmo episódio; oito das telas foram feitas cerca de 1619, com legendas na banda inferior em castelhano e com figuras de pequena escala; as restantes seis pinturas que se encontram enquadradas entre os anos de 1640-44 tem figuras monumentais, com efeitos tenebristas e alguns exageros na representação anatómica e estão legendadas na banda inferior em português. Estas, para Moura Sobral e Joaquim Caetano são as verdadeiras obras de Domingos da Cunha, com semelhanças de composição e de fatura (exceto aquela onde Santo Inácio ouvindo um sermão lhe saem raios da cabeça, que se encontra mais perto das telas da nave da igreja, também elas de Domingos da Cunha), executadas para S. Roque ou reaproveitadas do Noviciado da Cotovia[5].

Nas peças cedidas ao Museu Arqueológico do Carmo pela Escola Politécnica[6] encontram-se três peças do espólio da Cotovia: uma escultura de São Estanislau Kostka (padroeiro dos noviços); uma de São Luís Gonzaga (padroeiro da juventude); e uma Inscrição funerária e votiva de Luís Correia.

A estatuária religiosa em pedra possui uma função ornamental e identificativa. Trata-se de imaginária integrada em nichos abertos nas fachadas principais dos edifícios religiosos, aludindo ao orago do templo ou ao universo devocional da comunidade religiosa. Neste caso específico encontramo-nos iconograficamente perante dois santos da Companhia de Jesus. São Estanislau Kostka (padroeiro dos noviços) surge-nos, iconograficamente, sustentando um menino nos seus braços, levando-nos ao encontro com sua história onde se conta que, estando doente e durante um sonho, viu a Virgem Maria colocar o Menino Jesus em seus braços. Nossa Senhora, na sua aparição, convidou-o a ingressar na Companhia de Jesus. A indumentária de ambas as esculturas é semelhante, estando ambos vestidos como membros da Companhia de Jesus, isto é, com sobrepeliz[7]. São Luís Gonzaga (padroeiro da juventude)[8] tem como atributos um lírio, um crânio, uma disciplina ou um crucifixo. Um desses objetos, agora desaparecido da sua mão esquerda era por ele dado a contemplar. Imagens que física e estilisticamente se aproximam uma da outra, onde a desproporção pode igualmente ser observada e sendo visível ao nível da cabeça, parecendo à vista desarmada um restauro quase desastroso. Cultiva-se o gosto pelo gesto e pela exploração do momento determinante da ação. Mas se olharmos estas figuras num plano mais elevado, esta desproporção ameniza-se. Ambas as peças estão sobre uma base do mesmo material mas também ela provocando alguma dinâmica.
Por fim, vamos encontrar no Museu Arqueológico do Carmo uma Inscrição funerária e votiva que se encontrava na Capela de São Luís Gonzaga, no corpo da igreja, do lado do Evangelho. Esta capela tinha um altar com colunas de madeira dourada e capitéis. No retábulo havia uma pintura em pano com a imagem de São Luís Gonzaga, e uma imagem do mesmo santo de três palmos de altura, com resplendor de prata. Numa mão tinha um ramo de açucenas, em tecido, e à cintura um coração de prata[9]. Comprada ao noviciado, com escritura de 30 de Junho de 1666, por Luís Correia da Paz com intenção de ter aí a sua jazida. O seu filho morreu em 1665 e um ano depois foi aí enterrado.

Encaixada em uma parede da capela existia uma lápide que tinha inscrito o seguinte:
[Á EXALTAÇÃO DE CHRISTO/ DEDICADA ESTA CAPELA AO/ B. LUVIS GONZAGA POR LUIS COR/ REIA Q.DO A COMPRO A ESTE/ COLLEGIO PARA SEV JAZIGO E DE/ TODOS OS DESCENDENTES E AS/ CENDENTES DE SEV PAI FER/ NÃO CORREIA E SVA MAI BRANCA/ DA PAZ E IAZ NELLA SEV FILHO LV/ IS CORREIA DE SOVSA Q. FALECEV A/ 21 DE ABRIL DE 1665][10].
Mais distante deste circuito do espólio perdido do noviciado da Cotovia vamos encontrar no Museu Nacional de Arte Antiga duas pinturas monumentais desta dita casa de provação.
A pintura a óleo sobre tela do Panorama de Lisboa e partida de S. Francisco Xavier para a Índia, atribuída primeiro a Domingos da Cunha, artista jesuíta e noviço da Cotovia cuja atividade se desenvolveu até aos finais da primeira metade do século XVII (1644), depois a Gaspar Simões dos Reis e, mais recentemente ao pintor José Pinhão de Matos (165? – 175?). Esta pintura representa a vista panorâmica de Lisboa na segunda metade do século XVII, abarcando o Terreiro do Trigo a Este, até à Cruz Quebrada (já fora dos limites da cidade) a Oeste, passando pela Rocha do Conde de Óbidos e Belém, onde se destaca o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém, enquanto para o interior, ainda se consegue visualizar o Paço da Alcáçova, a Sé e São Vicente de Fora e a Oeste uma conjunto de conventos. São reproduzidos detalhadamente toda a zona ribeirinha e mais precisamente o mercado da Ribeira Velha, a Casa da Índia e o Terreiro do Paço devido à perspetiva vinda do rio Tejo, que se encontra cheio de caravelas e naus nacionais e Estrangeiras. A esta Vista de Lisboa no século XVII, é acrescida a partida para Goa de São Francisco Xavier corrido em Abril de 1541[11]. O pintor pinta os diversos momentos do acontecimento: a saída do Santo para a passarela que dá acesso ao Rio, o embarque na galeota e o trajeto desta que se dirige para a nau da armada da Índia. Na parte superior da composição está representada a cena de despedida de Francisco de Xavier ao rei D. João III, envolta por grinaldas suspensas por dois anjos. Um terceiro anjo, no ângulo superior esquerdo desenrola um pergaminho onde se pode ler: “Acceptis a Joane III / pontificis literis / nuntius apostolicus / in Indiam solvit / Santus Francisco Xavierius. /”. Depois de ter recebido as cartas pontifícias das mãos de D. João III, o Núncio apostólico São Francisco Xavier parte para a Índia.

José Pinhão de Mattos, c. 1730.
MNAA
Outra pintura que se encontra referenciada como pertencente ao noviciado está atualmente em exposição neste Museu. É uma Vista Perspectica de Goa e Terras Próximas no Século XVII[12], atribuída erradamente ao retratista Domingos de Gusmão que “… as pintou na casa de provação dos jesuítas”, como é referido num ofício expedido pelo Diretor da FCUL ao Reitor da Universidade de Lisboa em 23 de Julho de 1947 [13]. Datada do século XVIII (1715 d.C. – 1765 d.C.), esta vista de Goa, tal como o Panorama de Lisboa foram encontrados nas coleções da Escola Politécnica em 1864, onde fazia parte de um conjunto de pinturas evocativas da presença de São Francisco Xavier no Oriente.

José Pinhão de Matos
MNAA
Todas estas peças de arte que pertenceram ao noviciado da Cotovia traduzem bem a forma de sentir dos seus ocupantes e da Ordem que Santo Inácio iniciou, onde cada homem é constituído por um composto corpo e alma, isto é, “uniformização” do indivíduo, com “purificação do corpo” e “disciplina da alma”. Este espólio traduz o universo devocional desta comunidade religiosa, utilizado na prática cultual e devocional ou na estimulação do espírito missionário. No gosto dos jesuítas pela Gesamtkunstwerk ou obra de arte total vislumbra-se os princípios estéticos vigentes no mundo católico dos séculos XVI, XVII e XVIII, isto é, pós reforma católica.
[1] Vítor Serrão, A Pintura Proto-barroca em Portugal, 1612-1657, Coimbra: [s.n.], 1992, p. 133; J. da Costa Lima, “Artistas velhos e novos”, in Brotéria cultural, vol. XXXII, 1941, p.408; Joaquim Oliveira Caetano, O púlpito e a imagem: os jesuítas e a arte, Lisboa: Museu de São Roque, 1996, p.23 e 54; J. da Costa Lima, op. cit., p.408.
[2] Vítor Serrão, A Pintura Proto-barroca em Portugal, 1612-1657, Coimbra: [s.n.], 1992, p. 140. Vítor Serrão observa que Reynaldo dos Santos também já tinha verificado que esta série Inaciana revelava uma série de incongruências. Ver inclusive João Barreira, Arte Portuguesa, Lisboa: [s.n.], 1963.
[3] Luís de Moura Sobral, “Espiritualidade e Propaganda nos programas Iconográficos dos jesuítas portugueses”, In A Companhia de Jesus na Península Ibérica nos sécs. XVI e XVII : Espiritualidade e cultura : actas do Colóquio Internacional, Maio 2004, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Instituto de Cultura Portuguesa; Universidade do Porto, Centro Inter-universitário de História da Espiritualidade, 2004, p.402.
[4] Ibidem., p. 141.
[5]Ibidem, p. 401; Joaquim Oliveira Caetano, Pintura, Colecção de Pintura da Misericórdia de Lisboa, Século XVI ao Século XX, Tomo I, Lisboa : S.C.M., 1998; Ibidem, p. 54.
[6] Informação recolhida em José Morais Arnaud (coord.); Carla Varela Fernandes (coord.); Vitória Mesquita (coord.), Construindo a Memória: As Colecções do Museu Arqueológico do Carmo, Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, 2005.
[7] A Companhia de Jesus ordenou o uso da sobrepeliz durante o sermão e nas lições sagradas, daí surgirem estas duas estátuas com este tipo de indumentária.
[8] São Luís Gonzaga é considerado “Patrono da Juventude”. Seu corpo repousa na Igreja de Santo Inácio, em Roma. São Luís Gonzaga escreveu: “Também os príncipes são pó como os pobres: talvez, cinzas mais fedidas”. Após ter recebido a primeira comunhão das mãos de São Carlos Borromeu, decidiu-se pela vida religiosa, entrando para a Companhia de Jesus.
[9] Raul Lino, Luís Silveira, A. H. de Oliveira Marques, Documentos para a história da arte em Portugal, 4º vol., Lisboa: F.C.G., 1969-1991.
[10] Nobiliário [Manuscrito de Rangel de Macedo: Título de Correias e Pazes]. In PORTUGAL. Biblioteca Nacional de Portugal, Inventário : secção XIII : manuscriptos : collecção pombalina, Lisboa: BN, 1889, nº 272 a 276; ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO, Inventário do Cartório do Colégio dos Nobres, Liv. 71, p. 16, nº 3.
[11] Maria Helena Mendes Pinto, “Panorama de Lisbonne at départ de Saint François Xavier pour l’Inde”, in Via Orientalis (catálogo da exposição), Bruxelles: Europalia, 1991.
[12] Idem, “Panorama de Goa et de ses environs”, in Via Orientalis (catálogo da exposição). Bruxelles: Europalia, 1991.
[13] Arquivo Histórico dos Museus da Universidade de Lisboa – MUHNAC. Cópia de ofício expedido pelo Diretor da FCUL ao Reitor da Universidade de Lisboa em 23 de Julho de 1947. Lv. 718.
In VEIGA, Francisca Branco. Noviciado da Cotovia: O Passado dos Museus da Politécnica 1619-1759. Dissertação (Mestrado em Património Cultural) – Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2009.