A quinta da Cotovia do Monte Olivete

Noviciado da Cotovia, da Companhia de Jesus (1619 -1759).

Atual espaço ocupado pelo Museu Nacional de História Natural e da Ciência

Foi em 1540 com D. João III (1521-1557), que a Companhia de Jesus entrou em Portugal, sendo o nosso país a primeira Província jesuíta no mundo. Numa época de forte expansão territorial D. João III irá ser o primeiro rei na Europa a contactar Inácio de Loyola devido à necessidade de encontrar missionários, homens letrados, para evangelizar o Oriente, pregando e convertendo à Fé cristã os nativos. D. João concedeu privilégios aos jesuítas, nomeadamente casas gratuitas, liberdade de enviar missionários para todo o mundo e de fundar colégios.

A Companhia de Jesus instalou-se em Portugal continental e Ilhas Atlânticas, durante este período, fundando diversas Casas Professas, Colégios, Noviciados e quintas de recreio. Só em Lisboa, à data da extinção da Companhia havia sete instituições jesuítas: a Casa Professa de S. Roque, o Colégio de Santo Antão, o Seminário de S. Patrício dos irlandeses católicos, o Noviciado de Nossa Senhora da Assunção (da Cotovia), o Colégio de S. Francisco de Xavier em Alfama, o Hospício de S. Francisco de Borja e o Noviciado de Nossa Senhora da Nazaré em Arroios.

Começaram por se instalar em Lisboa no Colégio de Santo Antão, edifício sobre o terreno de uma antiga mesquita. Mais tarde, em 1553, estabelecem em Lisboa, na igreja de S. Roque, a sua Casa Professa e aí se inicia o Noviciado.

Na Congregação Geral de 1565 (dec.14), decretou-se que todas as províncias construíssem noviciados unidos ou separados de colégios. Na Congregação provincial de 1572, em Évora, discutiu-se pela primeira vez sobre a situação dos edifícios de Casa de Provação na Província Portuguesa, referindo a necessidade de nos colégios haver habitações e refeitórios separados para os noviços, para que estes se pudessem formar espiritualmente o melhor possível, tendo Roma aprovado a decisão[1]. Mas na Congregação Provincial de 1576, corrigindo a anterior, foi pedido ao padre Geral que se separassem os colégios das casas de noviciado[2]. Só na Congregação Geral de 1608 foi confirmada a separação dos jovens destinados à formação de jesuítas em casas próprias para assim se conservar melhor neles o fervor do noviciado e a sua formação específica.

Neste sentido, em Portugal, esta ideia de Casas de Provação tomou força, e em 1587 esse desejo de fundar um edifício separado como convinha para a boa disciplina dos noviços tornou-se realidade.

Foi Fernão Telles de Menezes (1530-1605), Governador da Índia em 1581 e mais tarde Capitão-General do Algarve, Presidente do Conselho da Índia, Geral da Armada e Conselheiro de Estado, casado com Maria de Noronha, o doador das terras do Noviciado da Cotovia, na quinta do Monte Olivete, (além de outros bens no valor total de 20 000 cruzados) para a concretização desse sonho.

A quinta ficava bem localizada porque se encontrava perto de S. Roque, Casa Professa da Companhia que, quando foi fundada ficava fora da muralha fernandina, local onde se concentrava o casario de Lisboa, provocando um desenvolvimento na malha da cidade para os lados da Cotovia. A quinta da Cotovia do Monte Olivete, tinha uma capelinha dedicada a Nossa Senhora da Assunção, sendo mais tarde adotado o mesmo orago na nova igreja. Situava-se esta quinta dos jesuítas segundo Matos Sequeira, «…à beira da estrada para Campolide, alongando-se, nessa direção, desde a esquina da Patriarcal Queimada até ao Rato e desde este ponto, pelo Salitre abaixo, até à Alegria.»[3]. O espaço total da quinta tinha forma triangular que foi ficando reduzido com a venda de terrenos para edificação de todo um casario circundante. Tinha água de nascente e um poço ao fundo da cerca além de duas cisternas no pátio principal do edifício. No terreno havia um olival, um pomar, cultivava-se trigo e plantavam-se produtos hortícolas[4]

Provavelmente terá ficado do período muçulmano o topónimo Cotovia (do árabe Kotoubia, minarete) que foi usado até ao século XVIII para designar a cumeada desde a Rua D. Pedro V até ao Largo do Rato onde está integrada a Quinta do Monte Olivete.

A primeira pedra do noviciado foi lançada em 26 de Abril de 1603, tendo ficado o Padre João Delgado a cargo da supervisão da obra. Dois anos depois, D. João Ribeiro Gaio, bispo de Malaca, lança a primeira pedra da igreja que, conforme o plano, se localizava no centro do edifício. A esta cerimónia já não assiste Fernão Teles de Meneses, que se encontrava doente. Em 1607, passou a dirigir a obra o famoso arquiteto real Baltazar Álvares (act. 1575 – m.1624). São dele a traça quer da igreja quer dos edifícios que compunham o Noviciado. A construção era complexa e tornou-se muito morosa e cara, provocando a escassez dos fundos.

Surge um novo financiador, Lourenço Lombardo ( ?  -1634), flamengo de Antuérpia, de 30 anos, homem de negócios e mercador que veio para Portugal com a intenção de fazer fortuna[5].

 Em 1613 entra para a Companhia de Jesus pela mão do seu confessor de S. Roque, o Padre Fernão Guerreiro e um ano mais tarde entra no Noviciado da Cotovia, dotando-o de 30 000 cruzados e cerca de vinte casas[6]. Quando Lourenço Lombardo assume a direção das obras do edifício este evoluiu muito rapidamente e as despesas diminuíram[7]. Em três anos e meio ficaram concluídas a igreja – incluindo a sacristia e o claustro anexo, – a portaria e as escadas, os corredores e os dormitórios do lado sul. A 1 de Novembro de 1616, transladaram-se os ossos do fundador Fernão Teles de Meneses, vindos da sacristia da igreja de S. Roque, para a nova igreja do Noviciado da Cotovia[8].

 Os ossos são depositados no túmulo, que a sua mulher mandou construir, na Capela-Mor, do lado do Evangelho[9].

Tumulo de Fernão Teles de Meneses e de sua esposa D. Maria de Noronha

Fotografia: Francisca Branco Veiga

Tumulo de Fernão Teles de Meneses e de sua esposa D. Maria de Noronha (vista superior).

Fotografia: Francisca Branco Veiga

A 13 de Junho de 1619, começaram a habitar o edifício os primeiros noviços estando nessa ocasião já concluídos o refeitório, a cozinha e despensa e os móveis necessários para a casa[10]. Lourenço Lombardo morre a «… 2 de Junho de 1634, depois de ter despendido o melhor da sua vida nas obras do Noviciado, rendeu a alma a Deus. Foi enterrado a meio da sacristia em uma campa raza com um simples epitáfio»[11].

Aos dois doadores atrás referenciados, temos que acrescentar o duque almirante de Castela, D. João Tomás Henriques de Cabrera, que deixou em testamento 80.000$000 réis em padrões de juro e a obrigação aos religiosos do noviciado de irem às missões da Índia e da China. Mas no seu testamento havia uma condição: no caso de suceder na coroa de Espanha D. Carlos, o Arquiduque de Áustria, todos os seus bens seriam aplicados num colégio em Madrid, se em vez disso subisse ao trono o Duque de Anjou, o colégio seria construído em Lisboa, com as mesmas condições. Verificou-se a segunda hipótese, e o Duque de Anjou sucedeu na coroa espanhola com a designação de Filipe V, ficando a herança com os jesuítas portugueses que investiram esse dinheiro no aumento do noviciado da Cotovia[12].

O edifício que Baltazar Alvares delineara inicialmente previa dois pisos, organizados em duas áreas bem distintas e hierarquizadas, com possibilidade de circulação entre elas por meio de corredores dispostos em quadra e abobadados. Este projeto nunca se chegou a executar na totalidade. Dos quatro lanços de corredores que devia ter o edifício apenas três se chegaram a concluir.

A igreja do noviciado encontrava-se no meio da largura do edifício, voltada a sul. Era cruciforme e constituída por uma única nave. Segundo Matos Sequeira possuía nove capelas[13], incluindo a capela-mor consagrada a Nossa Senhora da Assunção, padroeira da Casa do Noviciado[14]. A igreja era frequentada pela nobreza da corte e as próprias rainhas D. Maria Francisca Isabel de Saboia e D. Maria Ana de Áustria tinham aí as suas capelas[15].

D. Maria Francisca Isabel de Sabóia (1646- 1683). Esposa de D. Afonso VI e 2ª Esposa de D. Pedro II, fundou  uma Capela  na igreja do Noviciado invocando-a a Nossa Senhora da Conceição.
A rainha D. Maria Ana de Áustria (1683-1754). Esposa de D. João V, consagrou mais tarde a Capela de Nossa Senhora da Conceição a  S. Francisco de Xavier

O noviciado tinha uma cerca e, no meio desta, havia uma capelinha que a rainha de Inglaterra, D. Catarina, viúva de Carlos II de Inglaterra e filha de D. João IV, mandou construir em 1695 com a ajuda do arquiteto João Antunes[16]. Já em 1672 havia outra capela na cerca do Noviciado vindo referenciada no Livro das Rendas da Casa do Noviciado[17]. A partir de 1684, a cerca do Noviciado encontrava-se dividida em duas partes: a parte de cima, próxima ao edifício, era cultivada pelos padres jesuítas e a parte de baixo foi arrendada.

A 21 de Março de 1694 um incêndio destruiu grande parte da casa do noviciado, sendo referido esse incêndio por Júlio de Castilho e por Diogo Barbosa Machado[18].

O edifício do noviciado foi também afetado pelo terramoto de 1755. A Carta de doação feita ao Colégio dos Nobres, datada de 13 de Outubro de 1765 descreve a destruição do noviciado pelo terramoto: «nas cercas adjacentes ao sobredito noviciado demolido» e, mais adiante, «na igreja que o terremoto do primeiro de Novembro havia arruinado e demolido»[19].

Em Janeiro de 1759, por alvará régio, foram sequestrados os bens da Companhia de Jesus e a 3 de Setembro do mesmo ano foi decretado o seu banimento, sendo todos os padres expulsos do reino ou encarcerados e os seus bens confiscados.

Durante cento e quarenta e três anos no edifício do Monte Olivete formaram-se letrados e missionários.


[1] Francisco Rodrigues, S.J., História da Companhia de Jesus na assistência de Por­tugal, t. II, vol. I, Porto, Apostolado da Imprensa, 1938, p. 193; Arq. S.J., Congr. 42, f. 90.

[2] Arq. S.J., Congr.42, f.317.

[3] Gustavo de Matos Sequeira, Depois do terramoto, Lisboa, Academia das Ciências, p. 212.

[4] José Lopes Ribeiro, O edifício da Faculdade de Ciên­cias. Quatro séculos de re­tratos institucionais, Lisboa: Edições 70, 1987, p. 18.

[5] O padre António Franco refere-o da seguinte maneira:

«… veyo a Lisboa, & dela navegou à Mina, ajuntou algũ cabedal. Czou em Lisboa com huma filha de hum Flamengo, & de huma Portugueza. Depis disto foy duas vezes à India. Por ser homem de grande meneo, & industria, tratando & negoceando, enriqueceo de maneyra, que era dos homens estrangeyros nhum dos mais ricos de Lisboa». António Franco, Imagem da Virtude em o noviciado da Companhia de Jesus na corte de Lisboa, Coimbra, Real Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1717, pp. 12-13.

[6] Durval Pires de Lima, História dos mosteiros, conventos e casas religiosas de Lisboa na qual se dá notícia da fundação e fun­dadores das instituições religiosas, igrejas, capelas e irmandades desta cidade, Lisboa: Câmara Municipal, 1950-1972, p. 49.

[7] António Franco, op. cit., p. 16.

[8] «Em menos de três annos, & meyo poz o edifício capaz de se habitar; acabou a Igreja, que he muyto ayroza. Dia de todos os Sanctos primeiro de Novembro de mil seis centos, & dezaseis se poz nella o Sanctissimo Sacramẽnto.

Da hi a oito dias se treladaraõ pera o tumulo os ossos do Fundador, que estavaõ na sacristia de São Roque…». António Franco, op. cit., p. 16.

[9] B.N.P., Cód. 145, “História de Lisboa”, Cap. XV, Da casa do Noviciado da Com­panhia de Jesus, 2.º, De como por um meyo nãoesperado se adiantou muyto a casa do Noviciado.

[10] António Franco, op. cit., pp. 6 ss.; Jorge Cardoso, Agiologio lusitano dos sanc­tos e varoens illustres em virtude do reino de Portugal e suas conquistas, T. III, Lis­boa, Officina Craesbeekia-na, 1652, pp. 196ss.

[11] Sequeira, op. cit., p. 224; António Franco, op. cit., p. 19.

[12] Anuário da Es­cola Politécnica, 1909, pp. 11-12. Veja-se em anexo – Testamento do Almirante de Castella D. João Thomaz Henriques.

[13] Gustavo de Matos Sequeira, Depois do terramoto, Lisboa, Academia das Ciências, p. 235.

[14] Id., Ibid., p. 208.

[15] Id., Ibid., p. 239. No dia 6 de janeiro de 1718, a Gazeta de Lisboa Occidental fazia referência a uma visita da Casa Real ao noviciado: “A Rainha nossa Senhora, com Sereníssimo Principe, e as Sereníssimas Senhoras Infantes D. Maria, e D. Francisca, visitou no prymeiro dia deste anno a Casa do Noviciado da Companhia de Jesus, onde estava o Lausperenne, e depois passarão a ver o presépio dos Noviços, e ouvirão os Coloquios que dous deles fizeram ao Menino Deos.  Os religiosos lhe tinhão prevenido huma colação com toda a magnificência”. In Gazeta de Lisboa Occidental, nº 1, 6 de janeiro de 1718.

[16] Archivo Pittoresco, Lis­boa, Typ. de Castro Irmão, 1857-1868, pp. 244 ss.

[17] ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO, Livro das Rendas da Casa do Noviciado, maço 10. Referenciado por G. de Matos Sequeira em “Depois do Terremoto”. Actualmente esta referência não existe.

[18] Júlio de Castilho, Lisboa antiga: o Bairro Alto, Lisboa, Antiga Casa Bertrand – José Bastos, p. 30; , Diogo Barbosa MACHADO, Bibliotheca Lusitana , Lisboa,[s.n.], 1935, T. IV, p.193.

[19] ARQUIVO HISTÓRICO DOS MUSEUS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA – MUHNAC. Carta de doação de bens ao Colégio dos Nobres por D. José. 7 de março de 1661.

In VEIGA, Francisca Branco. Noviciado da Cotovia: O Passado dos Museus da Politécnica 1619-1759. Dissertação (Mestrado em Património Cultural) – Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2009.