1807-1821 Inversão Metropolitana (PT/BR)

Pela primeira e única vez na história uma colónia passava a ser a sede de uma corte europeia – acontecimento que alguns historiadores denominaram de “inversão metropolitana”.

A família real embarca para o Brasil. (Aguarela de Alfredo Roque Gameiro (1864-1935).
FRANCO, Chagas; SOARES, João – Quadros da História de Portugal. Lisboa: Pap. Guedes, 1917, 7º Ciclo – O tempo dos franceses até ao constitucionalismo – Ilustrações de Roque gameiro, Cap. 33 – A Primeira Invasão Francesa.
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26º Rei de Portugal – D. Maria I – A Piedosa
Filha de D. José I e de D. Mariana Vitória de Bourbon.
Nasceu em Lisboa em 1734.
Casou com o seu tio D. Pedro, que, por isso, tomou o título de D. Pedro III.
Aclamada Rainha em 1777. Reinou 39 anos.

27º Rei de Portugal – D. João VI – O Clemente
Filho de D. Maria I e de D. Pedro III.
Nasceu em Lisboa 1767.
Casou com D. Carlota Joaquina de Bourbon.
Aclamado Rei em 1816. Reinou 10 anos.

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No início do século XIX, em Portugal, tal como em Espanha, vivia-se um período politicamente revoltoso. O reino português encontrava-se empobrecido e esgotado depois de se ter envolvido numa crise motivada, entre outras razões, pelo refúgio forçado da família real no Brasil (29 de novembro de 1807), pelo alcance destruidor das três invasões napoleónicas (1ª invasão – 1807-1808; 2ª invasão – 1809; 3ª invasão – 1810-1811) e pela abertura dos portos do Brasil ao comércio mundial (decreto de 28 de janeiro de 1808), provocando a ruína económica portuguesa e consequente domínio dos ingleses sobre Portugal até à Revolução de 1820.

Como refere José Miguel Sardica, “A partir do momento em que a Revolução Francesa assumiu, por razões geoestratégicas, políticas, económicas e até ideológicas, uma essencial dinâmica de confronto entre o continente e os mares, Portugal e Espanha foram aspirados para o centro do turbilhão europeu”[1].

Portugal, na defesa dos seus interesses na metrópole e nas colónias, vai valorizar a sua aliança tradicional com a Inglaterra motivando uma tomada de posição inflexível contra a França. Por sua vez, a Espanha aceita sem protestar o Bloqueio Continental do imperador Napoleão Bonaparte aos navios do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda e, não colocando objeções à França, deixa, em 1807, o exército francês abastecer-se e atravessar o seu território, em troca de uma parte de Portugal como referido no Tratado franco-espanhol de Fontainebleau, dando origem à primeira invasão francesa de Portugal e à retirada da Corte e da família real para o Brasil[2].

No dia 29 de novembro de 1807, o Príncipe Regente ordenou a partida para o Brasil. A esquadra portuguesa, que saiu do porto de Lisboa, ia comandada pelo vice-almirante Manuel da Cunha Souto Maior.  Quatro naus da Marinha Real Britânica, sob o comando do capitão Graham Moore, reforçaram a esquadra portuguesa.

O general Andoche Junot entrou em Lisboa às 9 horas da manhã do dia 30 de novembro, à frente de um exército francês com cerca 26 mil homens.

No dia 30 de novembro de 1807, as tropas francesas comandadas pelo general Junot chegam a Lisboa.

 

Junot Protegendo a Cidade de Lisboa
Domingos Sequeira, 1808

Pela ação destrutiva que tiveram as invasões napoleónicas e pela permanência da corte portuguesa no Brasil instalou-se em Portugal uma profunda crise política, económica e social. O mal-estar aumentava ainda mais devido à condição sui generis das forças britânicas em Portugal. Como refere Ana Cristina Araújo,

“Com o objectivo de manter «a melhor inteligência» com Sua Majestade Britânica, o príncipe D. João impõe, a 6 de Julho de 1809, a redução da Regência para três membros, concedendo a sir Arthur Wellesley, marechal-general do exército português, o direito de participar nas reuniões daquele órgão do Estado. Os ingleses continuaram por detrás da reforma do Governo, de Maio de 1810, que consagra, na esfera do executivo, o conde de Castro Marim, o conde de Redondo, o principal Sousa, o lente Ricardo Raimundo Nogueira e o então patriarca de Lisboa, para além do ministro plenipotenciário Charles Stuart, que pouco depois abdica do direito de voto sobre questões militares e financeiras em favor de Beresford, prerrogativa usada pelo comandante-chefe dos exércitos de forma progressivamente discricionária e despótica”[3]

Arrival of the Prince, the Royal Family and the Court at the Church of Our Lady of the Rosary for a mass held in honour of their safe arrival from Rio de Janeiro.
Oil on canvas. Armando Martins Viana. 19th century.
Museu da Cidade, Rio de Janeiro

Instalada a corte e todo o aparelho de Estado no Rio de Janeiro, esta torna-se “a nova capital” do Império e é daí que saí, em 1808, o Decreto de Abertura dos Portos «às Nações Amigas», perdendo o direito ao monopólio da exploração da colónia, que obrigava todos os produtos das colónias a passarem antes pelas alfândegas da metrópole. Este decreto favorecia os interesses da Inglaterra, sendo que alguns pontos desse decreto já constavam do Tratado de Westminster, de 1654, como as referentes à liberdade religiosa nos domínios portugueses (14º) e a concessão de direitos judiciais, fiscais e económicos para britânicos residentes no reino português (5º, 8, 9º e 13º);[4]. Em 1810, assina-se com este país os Tratados de Comércio e Navegação e o de Aliança e Amizade que permitiram a hegemonia britânica nas relações comerciais entre ambos os países, assegurando aos Britânicos o acesso preferencial dos seus produtos a todos os territórios portugueses, com a concessão de privilégios especiais, mesmo em relação aos produtos portugueses, abrindo as portas de um mercado em três continentes, com tarifas alfandegárias privilegiadas. O fim do pacto colonial e abertura do Brasil ao comércio mundial provocou, na opinião de Rui Carlos A. Lopes, uma quebra de 75% do comércio externo e a ruína de muitos comerciantes que até então beneficiavam do monopólio da navegação transatlântica[5]. Deve-se realçar que o monopólio e o exclusivo do comércio eram a principal razão de ser da condição colonial, orientada em proveito da metrópole, e ao mesmo tempo motivo de oposição por parte da colónia, pois era um handicap no seu desenvolvimento[6].

Chegada da frota portuguesa no Rio de Janeiro, com destaque a nau Príncipe Real ao centro, e o Pão de Açúcar ao lado direito. Ilustração de Geoff Hunt.

A partir de 1808 aumenta a situação de miséria económica em Portugal com fábricas em declínio e a agricultura abandonada. Desde 1809 que o comandante do exército português é o general Beresford, nomeado com plenos poderes, impunha medidas repressivas, não poupando os quadros superiores do exército nacional[7]. As relações entre exército, isto é, os elementos ingleses, e junta governativa tornam-se tensas e difíceis.

No dia 2 de janeiro de 1815 a Gazeta de Lisboa expressava o sentimento geral de satisfação que existia na Europa face à queda do império napoleónico e às expetativas que trazia o Congresso de Viena:

“Começa finalmente hum ano de paz, depois de tantas e sanguinozas guerras; respira a humanidade, tanto tempo opressa pela tyrannia; e se o anno passado há de ser eternamente memorável pelo estrondo das victorias que conquistarão a paz da Europa, desthronárão o Despota, e restituírão os thronos aos legítimos Soberanos, não o ficará sendo menos o presente pelo complemento que a esta grande obra hão de pôr os Monarcas por meio do Congresso de Vienna, cujas decisões acertadas esperamos satisfarão a toda a família Européa”[8].

No Congresso, os representantes portugueses promoveram a anulação do Tratado de comércio, o que tendo em consideração os interesses ingleses em jogo, foi prontamente recusado pelo Visconde de Castlereagh (1769-1822), representante britânico no Congresso[9].

Os representantes portugueses argumentaram que o tratado de comércio e de navegação de 1810 só tinha sido posto em vigor por Portugal e que a Inglaterra sempre evitara o seu cumprimento quando se tratava dos seus interesses. Também pretendiam a anulação das cláusulas de aliança e amizade, que impunham a Portugal a cedência ao governo britânico por cinquenta anos das colónias de Bissau e Cacheu, e restringiam o comércio de africanos às possessões portuguesas na costa de África (chamada pelos portugueses Costa da Mina), e nos territórios de Cabinda e Molembo (art. X).

Príncipe regente Dom João VI, Conde da Ponte – Arquivo Nacional do Brasil – Biblioteca Nacional do Brasil
Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas.

A hegemonia marítima inglesa tentou impor-se no tráfico de escravos. As propostas de abolição da escravatura feitas pelos ingleses tinham um verdadeiro objetivo material, isto é, satisfazer as exigências postas pela sua crescente produção industrial. Nesse sentido, é assinado no dia 22 de janeiro de 1815 um tratado com a Inglaterra onde ficou decidido que ficava proibido traficar escravos (sem se abolir a escravatura) em qualquer parte da costa de África até ao norte do Equador.

Pretendiam os ingleses ficar com o direito de vigilância e consequente direito de visita dos navios em alto mar a fim de fiscalizar o cumprimento da proibição decretada. A Inglaterra aconselhava a abolição completa, o que para os portugueses iria prejudica muito a economia no Brasil, pois a mão-de-obra escrava era considerada muito necessária à economia brasileira. Em relação ao tratado de comércio e navegação, este vai ficar em vigor até 1835.

Segundo os princípios adotados pelo Congresso de Viena, a questão da Casa de Bragança não se encontrar na Europa teria de ser tratada. Assim, a solução proposta pelo representante francês no congresso, o príncipe Charles-Maurice de Talleyrand, que foi a que D. João VI acabou por adotar, foi a elevação da colónia brasileira à condição de Reino Unido, igualando o seu estatuto ao da metrópole (D. João passou a ostentar o título de Príncipe Real do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, e mais tarde rei das três coroas unidas, entre as quais, aquela onde residia como Rei do Brasil).

O representante inglês também concordou com a ideia, que resultou na efetiva criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves em 16 de dezembro de 1815, instituição jurídica rapidamente reconhecida pelas outras nações. Esta medida, além de defender a presença da Europa e da realeza na América, também agradou à colónia brasileira que se viu elevada a Reino do Brasil, ajudando, deste modo, a afastar a ideia da sua independência[10].

Com a Corte sediada no Brasil, o rei D. João VI criou a Real Biblioteca (hoje conhecida como Biblioteca Nacional) para abrigar os 60 mil livros levados de Portugal. Também foram construídos o Museu Real, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, a primeira escola de Medicina do Brasil, o Banco do Brasil e a Escola de Belas Artes, entre outros.

Em 1820, após a derrota de Napoleão, a transferência da Corte para o Brasil veio também a ter como consequência a Revolução de 1820. Portugal continental encontrava-se em situação de crise, decadência e ruína, e exigia-se o retorno da família real portuguesa e da Corte a Lisboa.

família real fez a viagem de regresso a Lisboa entre 26 de abril e 3 de julho de 1821, depois de mais de 13 anos de ausência. 

Constantino de Fontes. Desembarque d’el rei dom João acompanhado por uma deputação das Cortes: … em 4 de julho d’1821 regressando do Brazil. [S.l.: s.n., 18–?]. Gravura: buril e pontilhado.


[1] SARDICA, José Miguel – A Europa Napoleónica e Portugal. Lisboa: ed. Tribuna, 2011, p. 128.

[2] Sobre este assunto veja-se, VENTURA, António – A Guerra das Laranjas, 1801. In Academia Portuguesa de História, Guerras e Campanhas Militares. Lisboa, julho de 2008; Idem – “Portugal e a Espanha em Vésperas da Guerra das Laranjas. As Questões Militares”. Atas do XI Colóquio de História Militar, Comissão Portuguesa de História Militar. Palácio da Independência, Lisboa, 2001; ARAÚJO, Ana Cristina – “As invasões francesas e a afirmação das ideias liberais”. In MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, 5º vol.. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, pp. 17-18; SARDICA, José Miguel – ibidem, p. 132; MACEDO, Jorge Borges de – História Diplomática Portuguesa. Constantes e Linhas de Força, 2ª ed.. Lisboa: Instituto da Defesa Nacional/Tribuna da História, 2006, p. 394.        

[3] ARAÚJO, Ana Cristina – ibidem, p. 40.

[4] O comércio com o Brasil era especialmente realçado neste Tratado, tendo os mercadores britânicos livre participação no comércio no território brasileiro com a metrópole portuguesa, com exceção de cinco produtos (farinha, peixe, vinho, azeite e pau-brasil), permanecendo estes como exclusivo da Companhia do Brasil (art. 11º).

[5] LOPES, Rui Carlos Antunes Almeida – Un Bibliotecario ilustrado en el Ejército Portugués: el P. Ernesto Augusto Pereira de Sales, (1864-1946). Dissertação de Doutoramento apresentada à Universidad Complutense de Madrid, Facultad de Ciencias de la Información, 2015, p. 31.

[6] LUCAS, Maria Manuela – “Organização do Império”. In MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, 5º vol.. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, pp. 285-287; PEREIRA, Miriam Halpern – Revolução, Finanças, Dependência Externa: (De 1820 à Convenção de Gramido). Lisboa: Sá da Costa Editora, 1979, pp. 36 – 37.                 

[7] A título de exemplo, a execução, em 1817 do general Gomes Freire de Andrade sob a acusação de franco-maçonaria e tentativa de conspiração liberal.

[8] Gazeta de Lisboa, 2 de janeiro de 1815, p. 5. Os artigos mais importantes para Portugal no ato final do Tratado saído do Congresso de Viena são os artigos 105, 106 e 107 que podem ser lidos em, SILVA, Luiz Augusto Rebelo da – Quadro Elementar Das Relações politicas e Diplomaticas de Portugal, Tomo XVIII. Lisboa: Typ. da Academia Real das Sciencias, 1860, pp. 501-502. Vide Anexo 2.

[9] Declaração de anulação do tratado de comércio de 1810 entre Portugal e Inglaterra com base nas declarações dos plenipotenciários ddos dois países durante o Congresso de Viena. [Consultado 18 nov. 2015]. Disponível na internet em: <https://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/274726&gt;

[10]  D. João, interessado na manutenção da soberania portuguesa do espaço colonial, ameaçado pela ascendência norte-americana e inglesa fez publicar em 16 de dezembro de 1815 a Carta de Lei onde afirmava: “Que os meus Reinos de Portugal, Algarves, e Brasil formem dora em diante um só e único Reino debaixo do título de REINO UNIDO DE PORTUGAL, E DO BRASIL, E ALGARVES”. Esta lei saudada no Rio, não foi tão bem-recebida em Portugal. A elevação a Reino Unido colocava o Brasil em condições de igualdade ou até em situação superior a Portugal, dado que a Corte permanecia no Rio de Janeiro. A notícia só é publicada em Lisboa em 1816, no nº 299 da Gazeta de Lisboa, 17 de dezembro de 1816, edição de 3ª feira.

Veja-se CIRCULARES DO MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS – 1815-1870, Circular de 23 de dezembro de 1815. Índice: “Participando a elevação do Estado do Brasil à dignidade de Reino, e unido aos de Portugal e dos Algarves, por Carta de Lei de 16 de Dezembro de 1815, da qual se incluíram alguns exemplares.”. In AHI 317/03/06 (Arquivo Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro). Vide Anexo 3; BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto – Textos Políticos da História do Brasil, 3ª ed., vol.I. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 2002, nº 41 (Elevação do Brasil à categoria de Reino – Carta de Lei do Príncipe D. João (18 de dezembro de 1815)).

A defesa da ação colonialista na América levou a que os britânicos não quisessem fazer parte da Santa Aliança dado que esta incluía a hipótese de intervir nas independências da América. O afastamento inglês justifica-se pelo interesse da Coroa Britânica em alargar os seus negócios com as recém-independentes nações, das amarras impostas pelo pacto colonial. Em contrapartida, o governo francês, visando recuperar o seu prestígio diplomático, decidiu juntar-se às restantes monarquias em sinal de fidelidade. SARDICA, José Miguel – ibidem, pp. 347-349.

Também a ameaça dos Estados Unidos quanto a uma possível intervenção na América Latina era uma realidade exequível, uma vez que já eram o mais importante país das Américas, embora ainda lá existissem algumas possessões coloniais.

Como referir este texto:

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VEIGA, Francisca Branco (2024), 1807-1821 Inversão Metropolitana (PT/BR) (blogue da autora Francisca Branco Veiga). Disponível em: https://franciscabrancoveiga.com/ [20 de Agosto de 2024].

In VEIGA, Francisca Branco. Companhia de Jesus. O breve regresso no reinado de D. Miguel. Ed. de Autor, 2023, pp. 437.

Disponível em: https://www.amazon.es/Companhia-Jesus-Regresso-Reinado-Miguel/dp/B0C2RRNZDQ

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