O espólio do noviciado da Cotovia: A obra de arte total como programa cultual e de doutrinação 

Não tendo como pretensão o estudo aprofundado da iconografia na Companhia de Jesus, achei conveniente mostrar que um programa cultual e de doutrinação teve como consequência a criação de uma arte religiosa muito própria da Companhia de Jesus ao nível da arquitetura, da pintura, da escultura, da ourivesaria.

1619 – Inauguração do noviciado da cotovia – Encontramo-nos num período de reforma católica referido como Contra-reforma que se caracterizou por um movimento de reafirmação dos princípios da doutrina e da estrutura da Igreja Católica, diante do movimento de Reforma Protestante na Europa do século XVI. O Papa Paulo III convocou este concílio para assegurar a unidade de fé e a disciplina eclesiástica.

Na última sessão do Concílio de Trento (1545 – 1563), definiu-se de  forma explícita e intencional que a arte deve estar ao serviço dos ritos da igreja católica.

Dos decretos tridentinos transparece uma nova forma de ver a imagem sagrada, onde o “ver” uma coisa com desejo e com intenção equivalia a possuí-la.

A Companhia de Jesus nasce, neste período, como um instrumento na definição do ideal de uma Igreja reformada.

4. História do noviciado

O noviciado da Cotovia surge da necessidade de se criar um espaço único para a formação de noviços destinados ao oriente para evangelizar.

Em 1540 D. João III irá ser o primeiro rei na Europa a contactar Inácio de Loyola devido à necessidade de encontrar missionários, homens letrados, para evangelizar o Oriente, pregando e convertendo à Fé cristã os nativos

Surge a figura de Fernão Teles de Meneses benemérito que doou toda a sua fortuna para a construção deste noviciado, virado para o Tejo de onde se via os barcos partirem. Com bons ares e fora das muralhas fernandinas.

Entram os primeiros noviços em 1619 e são expulsos deste espaço em 1759.

Ocuparam este espaço durante 140 anos, ligados ao ensino e formação de jovens destinados às missões do oriente.

5. Enquadramento religioso e artístico

Relativamente à  Companhia de Jesus esta rapidamente respondeu a esta igreja reformada.

Foram várias as contribuições para que se possa falar de um “estilo jesuítico”: Ao nível interno, as Constituições, A Formula do Instituto, a auto biografia de Sto Inácio de Loiola, tal como, os Exercícios Espirituais; a nível externo, o Concílio de Trento, as Instrução de S. Carlos Borromeu ou o Tratado de São Roberto Belarmino.

Estas, São as linhas essenciais que vão configurar a prática cultual e devocional e que vão ditar iconograficamente toda a Arte.

A vida cultual é regrada e normalizada de acordo com o tipo de indivíduo.

A prática devocional da Companhia orienta-se, de forma clara, em quatro vertentes: Trinitária, Cristológica, Mariana e Hagiográfica

Deste modo, estes religiosos conseguiram interpretar os princípios estéticos vigentes no mundo católico pós reforma.

6. Tipologia da Coleção

O espólio do noviciado é composto por sessenta peças, essencialmente, objetos que serviram ao culto na Igreja de Nossa Senhora da Assunção, enriquecido com alguns paramentos que vieram da China e relicários de Itália.

Ao espólio do noviciado da Cotovia que se encontra no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, poderíamos adicionar pinturas e esculturas da igreja do antigo noviciado dispersas em diversas instituições de Lisboa

7. PINTURA FTM

Encontramo-nos no período de governação espanhola. FTM a 3 de Novembro de 1581 jurou e fez jurar o novo rei Filipe I em todo o estado da Índia.

Assim, ao observarmos o estilo de pintura aplicado no retrato sentimos que esta se aproxima da tradição tenebrista espanhola, da utilização pictórica do claro-escuro, como pintura de aparato e de representação. Iconograficamente muito ligado ao período filipino, pois tem como indumentária uma armadura filipina.

Muito idêntica à dos pintores Bartolomé González e Juan Pantoja de la Cruz .

Na tradição do retrato tem-se o cuidado de mostrar cuidadosamente rendas, vestidos e joias dos seus modelos, com postura rígida, e colocando um fundo de aparato. As mãos também são desenhadas com precisão, segurando um bastão, símbolo de comando. A luva destacada serve de reconhecimento da sua posição de Governador. Com Cruz de Cristo ao peito. Nesta tela visualiza-se os dois mundos de Fernão Teles de Meneses, o de guerreiro e o de político. É visível ao nível pictórico um desequilíbrio, mostrando uma pintura excelente na totalidade mas ao nível da feições a qualidade não é a mesma, denotando que provavelmente foram duas pessoas a pintá-la.

8. ESCULTURA TUMULÁRIA

Foram as sepulturas régias da capela-mor de Santa Maria de Belém que deram início a um conjunto de monumentos funerários tipologicamente idênticos

Na Capela-mor das Igrejas da Companhia de Jesus encontramos sempre o túmulo do fundador, conforme impunham as Constituições (309-310), além de testemunhar o sentimento de gratidão à figura benemérita do Fundador (312-314.

Existem duas ordens de razões para a grande aceitação deste tipo de fórmula: por um lado, o prestígio associado a monumentos fúnebres régios, e, por outro, o facto de a realização deste modelo não implicar, a nível técnico, a necessidade de grandes recursos ou apresentar particulares dificuldades.

Nível formal – composto por essas e suporte

Nível simbólico

Ásia simbolizava o poder real

arte oriental o elefante como elemento de suporte é simbólico de animal-suporte-do-mundo: o universo repousa sobre o lombo de um elefante.

Ocidente simbolizava eternidade, temperança, piedade, associadas à soberania, ao poder e à riqueza.

Nível técnico – não implica grandes recursos manuais e de especialidade.

 O que cativou a realeza e a nobreza por este tipo de sepultura terá sido o seu aspeto em pirâmide e o material utilizado (mármores).

9. ESCULTURA

As esculturas do noviciado da cotovia seguem as normas saídas do Concílio de Trento, refere-se à Invocação e Veneração às Relíquias dos Santos e das Sagradas Imagens da seguinte maneira:

“…declara este santo concílio, que as imagens devem existir, principalmente nos templos, principalmente as imagens de Cristo, da Virgem Mãe de Deus, e de todos os outros santos, e que a essas imagens deve ser dada a correspondente honra e veneração…» e «…que as imagens não sejam pintadas com formosura dissoluta…”.

“… se consegue muitos frutos de todas as sagradas imagens, não apenas por recordarem ao povo os benefícios e dons que Cristo lhes concedeu, mas também porque se expõe aos olhos dos fiéis os salutares exemplos dos santos milagres que Deus lhes concedeu,”

  • Santo Inácio nos Exercícios Espirituais (47), propõe o uso da visão e da imaginação como um recurso para que a oração se torne concreta. “…ver, com a vista da imaginação, o lugar material onde se acha aquilo que quero contemplar…”

As esculturas do noviciado da Cotovia são maneiristas, do início do século XVII, fidelizadas a parâmetros de imaginária sacra portuguesa, tipo esculturas de Gonçalo Rodrigues que trabalhou para uma clientela religiosa e tradicionalista.

A escultura é representada com equilíbrio e síntese no tratamento volumétrico, com serenidade expressiva e gestual.

A escultura da Virgem com o Menino Salvador do Mundo é uma imagem de vulto, em madeira de carvalho setentrional, estofada e policromada, apresentando grande delicadeza na sua postura.

A escultura de S. Paulo, com estofo em tons vermelho e verde e com vestígios de policromia floral e geométrica, com desenho de linha a dourado. Simbolicamente, teria uma espada aludindo ao seu martírio, pois foi decapitado, mas também é símbolo da palavra divina por ele anunciada, como diz a Carta aos Hebreus: “a palavra de Deus é viva e eficaz, mais penetrante que uma espada de dois gumes” (Hb 4, 12). Existem referências ao local onde se encontrava: Na sacristia encontrava-se «…em cima do caixão duas imagens de vulto, uma de S. Pedro, outra de S. Paulo, ambas de cinco palmos com resplendores de folha prateada…».

A escultura de Cristo estaria na sua origem atado a uma coluna. Esta imagem está associada à flagelação de Cristo. A cena da Flagelação, tal como os outros episódios da Paixão é, a partir do século XVI, representada com grande dramatismo, com Cristo atado a uma coluna e ladeada dos verdugos. Quando a cena se encontra despida de todo e qualquer elemento (verdugos, açoites) transforma-se numa imagem de grande devoção, como é o caso deste exemplar do noviciado da Cotovia. A coluna à qual Jesus geralmente aparece amarrado, e a corda, o flagelo, são elementos tipo que aparecem na Arma Christ. Com estas imagens os escultores praticavam a criação do nu, proibido pela igreja pois era considerado indecoroso e desonesto

10. PARAMENTARIA

Na paramentaria impera o princípio do culti decori, onde a sacralidade da função está associada à riqueza dos materiais. Servem para glorificar a Deus de maneira mais nobre e eficaz.

A função dos paramentos, ricamente bordados, é decorativa mas também serve «…de reforço do mecanismo de atracão dos sentidos dos crentes.»

Concílio de Trento, Sessão XXII refere-se ao aparato na celebração da missa da seguinte maneira:

 aquele que «…disser que as cerimónias, vestimentas, e sinais externos que usa a Igreja Católica na celebração das Missas, são muito mais incentivos de impiedade que obséquios piedosos, seja excomungado» (Cân. VII).

Para a igreja católica, as vestes representam Cristo cheio de glória.

Importam-se as novas tendências do Oriente exótico. Chegam a Lisboa, – a cidade europeia mais cosmopolita – como produto exótico, muito atrativo e a baixo custo, devido à utilização de mão-de-obra barata.

No Frontal de altar da igreja do noviciado da Cotovia vamos encontrar símbolos chineses: no campo central uma águia bicéfala; nas laterais, um vaso bojudo com crisântemos e peónias; é ladeado por um dragão e por um leão a brincar com a bola de brocado. No centro da barra, inscreve-se, em cartela circular com resplendor raiado, a inscrição IHS, emblema dos jesuítas.

O Véu de cálice, é em seda creme de origem chinesa, tem um estampado com imagens de crisântemos e galhos de frutos. Ao centro, inscreve-se, em cartela circular com raios setiformes, lisos e em serpentina, alternantes, a inscrição IHS.

11. MISSAL

Inseridos no espólio do noviciado da Cotovia encontram-se três Missais dos séculos XVII e XVIII d.C..

O missal Romano contém as leituras da Missa 

Pio V em 1570, através da bula Quo primum tempore, definiu o novo Missal Romano com o fim de eliminar os abusos cometidos na celebração da missa.

«…de tal sorte que os padres saibam de que preces devem servir-se e quais os ritos, quais as cerimonias, que devem observar doravante na celebração das Missas»

Lê-se: as missas de acordo com o tempo litúrgico (Advento, Natal, Quaresma, Tríduo Pascal, Tempo Pascal e Tempo Comum); O Rito da Missa (Ritos Iniciais, Liturgia da Palavra, Liturgia Eucarística (ofertório e prefácios), o Rito da Comunhão e os Ritos Finais); Apêndice do Rito da Missa (Bênçãos Solenes e Orações sobre o povo.

Este missal é da Primeira metade do séc. XVIII d.C. (1732). A capa é centrada pela imagem de Santo Inácio segurando com as mãos o livro da “Regra” da Companhia em que está inscrita a divisa AD MAIO DEI GLO REG SOC IESV, encimado por uma coroa e anjo, tudo em prata. Na contracapa a ornamentação é idêntica mas tendo ao centro a imagem de S. Francisco Xavier com lírios, atributo alusivo à pureza.

Várias gravuras a buril ornamentam o texto: a Adoração do Santíssimo, a Anunciação, o Nascimento do Menino Jesus, o Calvário e a Ressurreição

 12. RELICÁRIO

Da igreja do Noviciado da Cotovia chegou-nos este relicário em prata que é testemunho da veneração que se prestava aos Santos e aos Mártires

A exposição das relíquias dos santos era, nesta época pós-tridentina, um poderoso meio de propaganda religiosa.

Santo Inácio de Loyola, afirmava que se devia venerar as relíquias, tendo a mesma fé e devoção que perante as imagens dos santos.

Nos Exercícios Espirituais, Santo Inácio de Loyola escreve:

«Louvar as relíquias dos Santos, venerando-a estas e rezando a eles.»

O Concílio de Trento na sessão XXV referiu-se às relíquias da seguinte maneira:

«Ordena o Santo Concílio a todos os Bispos e demais pessoas que tenham o encargo ou obrigação de ensinar… sobre a intercessão e invocação dos santos, honra das relíquias e uso legítimo das imagens…».

«… também os condena a Igreja, aos que afirmam que não se deve honrar nem venerar as relíquias dos santos, ou que é vã a veneração que estas relíquias e outros monumentos sagrados recebem dos fiéis…»

Era importante transmitir ao povo crente que o culto das relíquias servia de veículo para estes alcançarem a Salvação.

Quase todas as casas da Companhia de Jesus receberam relíquias vindas de Roma e da Alemanha. A igreja de S. Roque, em Lisboa, é um bom exemplo da atitude da Companhia face às relíquias.

Eram frequentemente escolhidos para adornar os altares pois exerciam um poder enigmático sobre o crente.

Este relicário é de origem italiana com as marcas da Contrastaria de Roma (chaves cruzadas e umbela) e a do ourives: leão rampante (esta marca apresenta-se defeituosa, dificultando a sua leitura e justifica a interrogação da autoria).

Relicário em forma de custódia, realizado com folha de prata aplicada sobre estrutura de madeira e assente sobre base de madeira dourada, de secção triangular, mistilínea e moldurada, com relíquias correspondentes aos dois irmãos coadjutores João Soan (de Goto) e Diogo Kisai, martirizados em Nagasaki a 5 de Fevereiro de 1597; canonizados apenas em 8 de Junho de 1862 por Pio IX mas já anteriormente venerados no contexto da Companhia de Jesus.

Concluindo,

 [19, 20 e 21 novembro 2014 

I SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DE COLECÇÕES 

Investigação recente e novos olhares 

– Da Cotovia ao Museu Nacional de História Natural e da Ciência – 

21 DE NOVEMBRO 2014 │DIA 3 

Sexta –feira 

Anfiteatro Manuel Valadares 

5ª SESSÃO │HISTÓRIA DE COLECÇÕES: ARTE, CIÊNCIA E LIVROS 

9h30 │O espólio do noviciado da Cotovia: A obra de arte total como programa cultual e de doutrinação 

Francisca Branco Veiga ]