Catolicismo Liberal: o papel do jornal “L’Avenir” no século XIX

O jornal L’Avenir foi fundado em 1830 por Hugues Félicité Robert de Lamennais, juntamente com Henri-Dominique Lacordaire e Charles de Montalembert.

Surgiu na França pós-revolucionária, numa época em que a Igreja Católica procurava redefinir o seu papel na sociedade, perante as mudanças políticas e sociais do período.

O jornal defendia o chamado Catolicismo Liberal, que promovia:

  • Liberdade de consciência e de imprensa;
  • Separação gradual do Estado e da Igreja;
  • Direitos civis iguais para todos os cidadãos, incluindo protestantes;
  • Uma Igreja mais aberta às ideias modernas, mantendo a fé.

L’Avenir combinava religião e política, defendendo que a fé poderia conviver com as liberdades modernas – algo muito polémico para a época.

N°100 – Lundi 24 janvier 1831.

O primeiro número do jornal, que recebeu o subtítulo Dieu et la liberté (“Deus e a liberdade”), foi publicado a 16 de outubro de 1830.

Félicité de La Mennais, sacerdote francês do século XIX, foi uma figura central do Catolicismo Liberal. Inicialmente defensor do absolutismo monárquico e da autoridade papal (ultramontanismo), acabou por se afastar do tradicional galicanismo da monarquia francesa e abraçar ideias liberais e sociais.

Após a Revolução de 1830, fundou o jornal L’Avenir, um espaço que defendia a reconciliação entre Igreja e democracia, a liberdade de ensino e a separação entre Igreja e Estado. La Mennais era conhecido pelo seu carisma, inteligência e talento literário, atraindo à sua volta discípulos, sacerdotes e leigos, incluindo Philippe Gerbet e Henri Lacordaire.

Embora fosse o diretor do jornal, La Mennais não se ocupava da gestão quotidiana, preferindo orientar os colaboradores e escrever artigos que expressavam a sua visão de uma Igreja capaz de desempenhar um papel central na construção de uma sociedade mais democrática e fraterna.

Lacordaire, vestido de dominicano, no jornal L’Avenir da jovem França

Há muito convencido da necessidade de separar o catolicismo das compromissos políticos, Charles de Montalembert sentiu-se atraído pelo programa de L’Avenir enquanto viajava pela Irlanda. Escreveu então a um amigo:

“Finalmente, abrem-se agora belos destinos para o catolicismo. Libertado para sempre da aliança com o poder, irá recuperar a sua força, liberdade e energia originais. Quanto a mim, despojado de um futuro político, decido dedicar o meu tempo e os meus estudos à defesa desta nobre causa. Se me quiserem no L’Avenir, abandono tudo.”[0]

Henri Lacordaire, defensor de uma forte aliança entre o cristianismo e a liberdade civil e religiosa, sentia-se desapontado com o clero conservador que o rodeava. Próximo do abade Gerbet, conheceu Lamennais e ficou entusiasmado com as ideias do novo jornal L’Avenir. Inicialmente planeava partir para os Estados Unidos, onde a Igreja vivia em liberdade, mas a Revolução de 1830 atrasou a sua viagem.

Ao colaborar com L’Avenir, assumiu a maioria das funções de redação durante os primeiros dois meses. Nos seus artigos, destacou-se pelo tom firme e incisivo, criticando frequentemente o governo e os bispos nomeados pelo Estado. Muitas das expressões mais marcantes do jornal eram da sua autoria.

O jornal enfrentou forte resistência dentro da Igreja Católica tradicional. As ideias ousadas e o tom vigoroso do jornal, que incluíam críticas aos bispos, geraram oposição por parte de alguns membros do clero e causaram divisões no seio dos católicos franceses. Em resposta, o episcopado francês publicou várias cartas pastorais dirigidas ao público sobre o jornal, enquanto o governo confiscou dois números apenas cinco semanas após o seu lançamento, levando Lamennais e Lacordaire a julgamento por delitos de imprensa, sendo depois ambos absolvidos.

A publicação do jornal foi suspensa a 15 de novembro de 1831, sendo definitivamente encerrada a 15 de agosto de 1832, após a publicação da encíclica do Papa Gregório XVI, Mirari vos, acerca dos Males da separação da Igreja e do Estado.

“16. Mais grato não é também à religião e ao principado civil o que se pode esperar do desejo dos que procuram separar a Igreja e o Estado, e romper a mútua concórdia do sacerdócio e do império. Sabe-se, com efeito, que os amadores da falsa liberdade temeram ante a concórdia, que sempre produziu resultados magníficos, nas coisas sagradas e civis.”[1]

Devido às imensas criticas feitas por toda a Europa, dois anos mais tarde o papa achou necessário editar outra encíclica, a Singulari Nos, criticando a resposta de Lamennais à Mirari Vos:

“Cegos, na verdade, a conduzirem outros cegos, são esses homens que inchados de orgulhosa ciência, deliram a ponto de perverter o conceito de verdade e o genuíno conceito religioso, divulgando um novo sistema, com o qual, arrastados por desenfreada mania de novidades, não procuram a verdade onde certamente se acha; e, desprezando as santas e apostólicas tradições, apegam-se a doutrinas ocas, fúteis, incertas, reprovadas pela Igreja, com as quais homens estultíssimos julgam fortalecer e sustentar  a verdade (Gregório XVI, Encíclica Singulari Nos 7 Jul. 1834)”[2].

 Segundo Lamennais, assinar uma declaração de submissão ao Papa equivaleria a reconhecer a infalibilidade individual do Papa e a considera-lo como Deus[3]. Após ter deixado a Igreja, escreve a obra Paroles d’un Croyant (1834) criando grande tumulto no seio do catolicismo, sendo condenada por Roma na Encíclica Singulari Nos, com o subtítulo Sobre os erros de Lamennais, em julho de 1834.

L’Avenir de Lamennais não era apenas um periódico: foi um instrumento simbólico do debate entre tradição e modernidade dentro do Catolicismo no século XIX.

XXXXX

[0] Lettre de Charles de Montalembert à Gustave Lemarcis,  10 septembre 1830, in Lecanuet, R.P. E., Charles de Montalembert: Journal intime inédit, vol. I, Paris, de Gigord, 1895-1901, p. 133.

[1] Gregório XVI – Carta Encíclica MIRARI VOS, 14 de agosto de 1832, sobre os principais erros, ponto 16: Males da separação da Igreja e do Estado. PAPAL ENCYCLICALS, [Consultado 26 jul. 2012]. Disponível na internet em: <http://www.papalencyclicals.net/Greg16/g16mirar.htm&gt;.

[2] Carta Encíclica Pascendi Dominici Gregis, do Sumo Pontífice Pio X Aos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e Outros Ordinários em Paz e Comunhão com a Sé Apostólica sobre as Doutrinas Modernistas. [Consultado 18 set. 2011]. Disponível na internet em: http://www.vatican.va/holy_father/pius_x/encyclicals/documents/hf_p-x_enc_19070908_pascendi-dominici-gregis_po.html

[3] CONSTANTIN, C. – “Libéralisme Catholique”. In VACANT, A.; MANGENOT, E.; AMANN, E. – Dictionnaire de Théologie Catholique, vol. IX. Paris: Letouzey et Ané, 1926, pp. 2495-2497. Sobre a ideia geral, origens e história do liberalismo católico na Europa, veja-se inclusive, VACANT, A.; MANGENOT, E.; AMANN, E. – Dictionnaire de théologie catholique: contenant l’exposé des doctrines de la théologie catholique leurs preuves et leur histoire, vol I. Paris: Letouzey et Ané, 1903, pp. 506-630.

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VEIGA, Francisca Branco, L’Avenir: O Jornal do Catolicismo Liberal no Século XIX (blogue da autora Francisca Branco Veiga). Disponível em: https://franciscabrancoveiga.com/ [30 de agosto de 2025].

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VEIGA, Francisca Branco, A Restauração da Companhia de Jesus em Portugal 1828-1834. O breve regresso no reinado de D. Miguel. Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor em História, na especialidade de História Contemporânea, FLUL, 2019.

1834, Hasteada a bandeira de um catolicismo integrador dos cidadãos

Com o fim da monarquia absoluta miguelista teve início a monarquia Constitucional sob a orientação liberal. Doze ordinários diocesanos de nomeação absolutista que se encontravam ausentes, fugidos ou clandestinos, não foram reconhecidos pelo novo poder, mesmo tendo obtido as respetivas bulas de confirmação. O governo liberal, tal como já o tinha feito no Porto, nomeava governadores temporais e indicava aos cabidos a eleição de vigários capitulares da sua escolha[i].

Contudo, neste novo cenário político a religião católica será um importante elemento de integração dos cidadãos na pátria. Mas, para cumprir essa tarefa, era necessário que os religiosos não recebessem influência estrangeira, considerou-se uma ameaça à pátria todo o clero que se submetesse a líderes fora de Portugal. Esta oposição aos religiosos vinculados à Santa Sé pode também ser compreendida pelo reconhecimento destes ao miguelismo e pela oposição ao constitucionalismo. Generalizou-se pelas dioceses uma situação de “quase” cisma, em que clérigos e leigos ou acatavam as autoridades eclesiásticas, impostas pelos liberais ou mantinham a ligação aos seus bispos ausentes. Esta situação prejudicava gravemente os fins espirituais e pastorais da Igreja e a consolidação das instituições.

No dia 22 de agosto de 1834 o padre jesuíta Margottet refere que o próprio Papa se encontrava preocupado com «os negócios da religião» em Portugal mandando fazer«na Igreja de Santa Maria Maior huma Novena por esse caro pais»[ii].

Nestas decisões nunca esteve em causa o valor social da religião, mas a determinação em pôr fim à presença da Igreja como um Estado dentro do próprio Estado. As Congregações religiosas foram, neste contexto, o alvo central da atuação dos liberais. O que se pretende é tornar a Igreja portuguesa independente de pressões externas. No art. 75 da Carta Constitucional, o governo liberal restringia-lhes o seu papel: “O Rei é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado. São suas principais Atribuições:[…] § 2.° – Nomear Bispos e prover os Benefícios Eclesiásticos; […] § 14.° – Conceder ou negar o Beneplácito aos Decretos dos Concílios e Letras Apostólicas e quaisquer outras Constituições Eclesiásticas, que se não opuserem à Constituição; e precedendo aprovação das Cortes, se contiverem disposição geral”[iii].

A intenção dos liberais era reintegrar a igreja ao serviço do novo regime, colocando na hierarquia da igreja homens da sua confiança, cortando as relações diplomáticas com a Cúria Romana como retaliação contra o reconhecimento de D. Miguel como rei de Portugal e contra as nomeações feitas pelo Papa Gregório XIV de bispos apresentados por D. Miguel para as sedes diocesanas que se encontravam vagas em 1831.

Neste processo, a posição da Cúria Romana ao rejeitar o governo liberal, não facilitou o diálogo com o governo de Portugal, o que levou ao corte de relações diplomáticas entre Lisboa e Roma em 1833, e à destituição da hierarquia religiosa nomeada pelo Vaticano, nomeando novos Bispos e Prelados[iv]. Gregório XVI, numa alocução a 30 de setembro de 1833, protesta contra a expulsão do Núncio, contra os decretos e medidas tomadas por D. Pedro, considerando-as como crimes contra a Igreja e contra «os direitos invioláveis da Santa Sé»[v]. Em dezembro, o Papa manda retirar da sua residência as armas de Portugal e retira ao representante de Portugal em Roma o poder de representar o país[vi]. Reforça a sua condenação e reprovação da política religiosa liberal portuguesa no Consistório Secreto do dia 1 de agosto de 1834, e de novo no Consistório Secreto do dia 2 de fevereiro de 1836, falando de um «funestro cisma»[vii]. O Sumo Pontífice vai considerar estes decretos «írritos e nulos», declarando o Relatório que precedeu o decreto de extinção das Ordens Religiosas repleto de «cousas falsas e criminosamente ditas».

A partir de 1834 o governo liberal, que concebia um catolicismo autonomizado de Roma, antiultramontano, corta relações diplomáticas com o Vaticano, só sendo reatadas a 30 de julho 1848 através de um Convénio entre ambas as partes.

Um longo e complexo processo de reaproximação entre o Estado português e a Santa Sé irá decorrer em dois períodos distintos. No primeiro período, estava em jogo algo de essencial para a estabilização do regime constitucional, como o reconhecimento do trono de D. Maria II pela Cúria e o acordo entre as duas partes sobre a legitimidade dos bispos eleitos por D. Miguel para as sedes diocesanas que se encontravam vagas. Num segundo período, o que estava em causa era essencialmente a retoma da tradição concordatária interrompida.

Deste modo, um acordo do Estado com a Santa Sé, parecia necessário ao restabelecimento da paz religiosa na sociedade e ao reforço e estabilidade do regime liberal e do trono de D. Maria II.


Excerto do artigo com o título, “1832-1834 Regência de D. Pedro em nome de sua filha D. Maria da Glória:
fim do governo temporal da Igreja Católica e das Ordens Religiosas em
Portugal”.

In SOARES, Clara Moura; MALTA, Marize (eds.), D. Maria II, princesa do Brasil, rainha de
Portugal Arte, Património e Identidade, Lisboa: Palácio Nacional da Ajuda, 12 nov. (pp.
113-120). ARTIS – Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Ligação: https://www.academia.edu/40918078/
«1832-1834 Regência de D. Pedro em nome de sua filha D. Maria da Glória: fim do governo temporal da Igreja Católica e das Ordens Religiosas em Portugal»

[i] DÓRIA, Luís – Do Cisma ao Convénio: Estado e Igreja de 1831 a 1848. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2001, pp. 38-43. Veja-se sobre o assunto REIS, António do Carmo – A Igreja Católica e a Política do Liberalismo. Para uma explicação do cisma Religioso. In Catolicismo e liberalismo em Portugal: (1820-1850).Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009, pp. 47-54.

[ii] Carta de Cypriano Margottet para uma residente da cidade do Mondego. Genova, 22 de agosto de 1834. In ARQUIVO DA PROVÍNCIA PORTUGUESA DA COMPANHIA DE JESUS (APPCJ), Companhia de Jesus 1829-1834, Memórias pertencentes aos padres da Companhia de Jesus, Carta de Cypriano Margottet para uma residente da cidade do Mondego, fls. 38-43[carta completa]. Veja-se, inclusive, VEIGA, Francisca Branco – A Restauração da Companhia de Jesus em Portugal 1828-1834: O breve regresso no reinado de D. Miguel. In Tese elaborada para obtenção do grau de Doutor em História, na especialidade de História Contemporânea, 2019, p. 544.

[iii] Carta Constitucional de 1826. In Portal da História. Disponível na internet em: http://www.arqnet.pt/portal/portugal/liberalismo/carta826.html. Consultado 12 setembro de 2012.

[iv] CRUZ, Manuel Braga da – As relações entre a Igreja e o Estado Liberal – do «cisma» à Concordata (1832-1848). In O Liberalismo na Península Ibérica na primeira metade do século XIX, 2º vol.. Lisboa: Sá da Costa, 1982, pp. 226-228. 

[v] BRASÃO, Eduardo – Relações diplomáticas de Portugal com a Santa Sé: o reconhecimento do Rei D. Miguel (1831). Lisboa: Academia Internacional da Cultura Portuguesa, 1972, pp. 462-463.

[vi] DÓRIA, Luís – op.cit., pp. 107-117.

[vii] DINIS, Pedro – Das Ordens religiosas em Portugal, 2ªed.. Lisboa: Typ. J. J. A. Silva, 1854, pp. 321-325; 325-326.

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Como referir este artigo:

Sendo um blogue com conteúdos de criação intelectual privada, estão protegidos por direitos de autor. Seja responsável na utilização e partilha dos mesmos!

VEIGA, Francisca Branco (2023), 1834, Hasteada a bandeira de um catolicismo integrador dos cidadãos (blogue da autora Francisca Branco Veiga). Disponível em: https://franciscabrancoveiga.com/ [02 de Janeiro de 2023].

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VEIGA, Francisca Branco, Companhia de Jesus. Companhia de Jesus. O Breve Regresso no Reinado de D. Miguel. Ed. Autor, 2023, 437 p. (Livro disponível na Amazon.es)