Segundo o “modo nostro”: o edifício do noviciado da Cotovia da Companhia de Jesus, 1619 – 1759

Noviciado da Cotovia – Fachada, 1863 (Archivo Pittoresco, 1863)

Resumo

Este artigo sobre o noviciado da Cotovia da Companhia de Jesus, instituição criada no espaço onde atualmente existe o Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MNHNC), tem como objetivo dar a conhecer a história e edificação deste espaço de educação e religião, no período entre 1619 e 1759.

Pelo estudo do espólio arquitetónico e artístico que chegou aos nossos dias e de fontes de informação com ele relacionado pretendeu-se demonstrar que combinando os fatores espirituais com os factores físicos, este espaço assumiu a sua forma exaltando-se o espírito do lugar de acordo com o modo nostro.

Assim, concebido para responder ao programa arquitetónico específico desta Ordem, o noviciado da Cotovia tornou-se uma referência como primeiro noviciado da Companhia de Jesus na Província Portuguesa.

Palavras-chave: Companhia de Jesus – Noviciado – Arquitetura – História

Abstract

This article about the novitiate of the Cotovia da Companhia de Jesus, an institution created in the space where the National Museum of Natural History and Science (NMNHS) currently exists, has the objective of reviewing the history and construction of this education and religion space, in the period between 1619 and 1759.

By studying the architectural and artistic heritage that has come to our days and the sources of information related to it, it was intended to demonstrate that combining spiritual with physical factors, this space built its shape, exalting the spirit of the place according to the modo nostro.

Thus, conceived to respond to the specific architectural program of this Order, the Cotovia novitiate became a reference as the first novitiate of the Society of Jesus in the Portuguese Province.

Keywords: Society of Jesus – Novitiate – Architecture – History

Introdução

Partindo do título deste artigo Segundo o modo nostro: o edifício do noviciado da Cotovia da Companhia de Jesus, 1619 – 1759 é nosso propósito fazer um estudo sobre a arquitetura do edifício dos atuais Museus da Politécnica (MNHNC), no período de 1619 a 1759, isto é, desde o início do noviciado jesuíta até à expulsão da Companhia de Jesus de Portugal.

Depois de fazer um estudo do espólio que chegou até nós e que se encontra nos reservados do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, sentiu-se ser pertinente efetuar uma recolha de informação documental, com uma perspetiva de análise nunca realizada até hoje.

Como orientação desta análise, optou-se por uma metodologia de organização documental, baseada numa abordagem histórica e interpretativa do programa arquitetónico específico da Companhia de Jesus. Desta forma, iremos focar-nos, principalmente, em dois temas: a histórica do edifício nos 140 anos da existência do noviciado e a arquitetura dos seus espaços, inserindo-os no pós Concílio de Trento e nas instruções da Companhia de Jesus para a criação de edifícios jesuítas.

A arquitetura do edifício pensada pelo arquiteto Baltasar Alvares segue a linha do modo nostro jesuíta, onde a atenção ao método, materiais e coerência funcional tinha como fim último a criação de dois espaços distintos, a área da ação do espírito e a área das atividades do corpo e da comunidade.

Os documentos mais importantes para este estudo são as Constituições da Companhia de Jesus, os decretos e os diversos diplomas emanados do Concílio de Trento, as Instrução de S. Carlos Borromeu e os Exercícios Espirituais. Do Arquivo Nacional da Torre do Tombo recolhemos da Colecção do Colégio dos Nobres o Livro 154, da Biblioteca Nacional de Portugal o códice 145, e da biblioteca dos Museu Nacional de História Natural e da Ciência o livro do jesuíta António Franco A imagem da Virtude … em Lisboa. Todos os documentos contêm informação sobre a história do noviciado da Cotovia. Destaca-se o manuscrito do ANTT sobre a História da Fundaçam aumento e progresso da casa de provaçam da Companhia de Iesu de Lisboa, Anno de 1597, pelo facto de nunca ter sido transcrito e de conter informação precisa, escrita por contemporâneos, desde a escritura da Quinta da Cotovia até à entrada dos noviços.

Objetivamente, optou-se de forma explicita por um processo de amostragem qualitativa, assumindo a parcialidade e subjetividade dos autores e intervenientes. Na decorrência deste artigo, acredita-se terem ficado claras as razões que estiveram na origem e posterior construção deste espaço único, criado para a formação de jovens que tinham como objetivo final «ir em missão».

Veja o artigo completo em

Mátria Digital, Ano X, Número X, Dezembro 2022 – Novembro 2023

Francisca M. Branco Veiga, Segundo o modo nostro: o edifício do noviciado da Cotovia da Companhia de Jesus, 1619 – 1759, pp. 285-318.

https://matriadigital.cm-santarem.pt/index.php/ensaio

Veja-se, inclusive, VEIGA, Francisca Branco. Noviciado da Cotovia: O Passado dos Museus da Politécnica 1619-1759. Dissertação (Mestrado em Património Cultural) – Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2009.

O “modo nostro” Jesuíta

Il Gesú, de Roma (protótipo), S. Roque, de Lisboa e Colégio de Jesus, de Coimbra (Sé Nova)

Mantendo o respeito pelas normas da II Congregação Geral, a Companhia de Jesus segue a linha de que, todas as edificações deviam respeitar os critérios de utilidade, funcionalidade e adaptação aos Ministérios da Companhia, constituindo, deste modo, a essência do modo nostro jesuíta.

A linha arquitetónica definida pela Companhia irá também ser seguida em Portugal. Vão surgir igrejas amplas com ou sem capelas laterais, onde o transepto é curto. Igrejas com uma só nave, compacta, que se desenvolve em andares com tribunas e galerias sobre as capelas ou sobre os altares. O seu espaço interno apoia-se em esquemas rítmicos simples e de grande largueza de conceção. Esta vasta área adapta-se perfeitamente à função missionária da Companhia, mais dedicada à pregação, às confissões, ao estudo, ao ensino, sempre em missão.

Com este tipo de planta aumenta o número de cristãos no seu interior, tal como a celebração de várias missas em simultâneo nas várias capelas, pois as naves laterais transformaram-se em capelas para Santos, para servirem de intercetoras entre o homem e Deus. Trata-se de recuperar, a partir desta planta, os fiéis perdidos com a reforma protestante e voltar à clara tradição cristã. Para os jesuítas, a igreja é agora símbolo do todo um processo que leva a humanidade à salvação, instrumento espiritual de mediação entre a terra (matéria) e o céu (espírito). Segundo o padre jesuíta Francisco Rodrigues, as igrejas jesuíticas lusas da segunda metade do séc. XVI e primeiro quartel do séc. XVII seguem o modelo da igreja de Gesú.

Deste modo, o protótipo de igreja jesuítica é a igreja do Gesú, de Roma, a primeira igreja construída para a Companhia de Jesus e aquela em que transparece os objectivos da Contra-Reforma, que mais tarde vão ser utilizados em toda a arquitectura religiosa barroca. Em 1568, foi iniciado o templo pelo arquiteto Giacomo Barozzi (Vignola). Igreja onde o altar se encontra no local de acordo com objetivos litúrgicos assumidos no Concílio – a disposição interior reúne as vantagens do plano alongado, em cruz latina, onde todas as vistas convergem para o alvo principal, disposto em situação predominante, o altar.

Fachada e Planta da Igreja de Il Gesú (Roma, Itália)

Uma só nave, larga e desafogada, seis capelas laterais intercomunicantes, de um lado e de outro da nave, erigidas em honra dos Santos e Mártires, permitindo-se a passagem destas ao transepto através de duas câmaras circulares; o transepto é ligeiramente saliente com capelas nos topos, a cúpula sobre o cruzeiro é grande, permitindo iluminar toda a abside; o altar principal fica, geralmente, numa posição bem visível, no topo da capela-mor e o púlpito[1] alto e bem posicionado para dominar sem dificuldade todo o templo e ao mesmo tempo tornar-se o ponto focal, para onde tudo converge. A necessidade de mostrar a grandeza de Deus num espaço amplo, com muita luz incentivando o povo cristão ao culto e mostrando de uma só vez todo o recinto sagrado e o orador a pregar. Esta igreja corresponde a dois tempos vividos pela Reforma, a sobriedade dos primeiros tempos e a riqueza e ostentação do segundo, onde o maneirismo da estrutura arquitetónica se mistura com barroco da decoração. [2]


[1] Tribuna, nas igrejas, de onde os oradores sagrados pregam;

[2] CHIESA DEL GESÚ DI ROMA Disponível na Internet em: <http://www.chiesadelgesu.org/>. [Referência de: 25 agosto de 2020]; Paulo F. Santos., O Barroco e o jesuítico na arquitectura do Brasil, Rio de Janeiro: Kosmos, 1951, pp. 92 e ss.

Fachada e Planta da Igreja de S. Roque (Lisboa, Portugal)

No âmbito do Padroado Português, o modelo mais próximo terá sido a igreja de S. Roque, em Lisboa. Entre 1566 e 1575 a construção de S. Roque irá subir até a cornija interior com a intervenção de Afonso Álvares. Com a morte deste, surge um segundo arquiteto, Baltasar Álvares, seu sobrinho e colaborador.

O projeto da igreja de S. Roque embora inspirado no da igreja de Gesú, apresenta em relação a esta várias diferenças como: a diminuição da largura do transepto que, na igreja de Lisboa, quase se confunde, em planta, com as capelas laterais; enquanto na arquitetura da Gesù há uma cúpula central que depende dos arcos gerados pela abóbada de berço, no padrão português a adoção das traves promove um espaço mais livre e a inexistência de abóbadas recortando o forro da nave central possibilita o uso de padrões decorativos cada vez mais sofisticados nos forros (como a pintura ilusionista); oito capelas laterais intercomunicantes; cabeceira retangular com capela-mor plana e pouco profunda; a substituição da abside[1] por uma capela-mor muito pequena e inclusão de uma teia com balaústres que delimita o avanço do santuário em relação ao corpo da igreja[2].


[1] Hemiciclo ou meia abóbada que termina as basílicas cristãs, debaixo do qual se contém o altar-mor;

[2] Oceanos. António Mega Ferreira (dir.), nº 12 (nov. 1992), Lisboa: C.N.C.D.P., pp.105-106; Maria João Madeira Rodrigues, A igreja de S. Roque, Lisboa: Santa Casa da Misericórdia, 1980.

Fachada e Planta da Igreja do Colégio de Jesus (Sé Nova, Coimbra, Portugal)

A construção do Colégio de Jesus, foi iniciada em 1547 por Afonso Álvares, mas em1560 a planta original foi modificada para se adaptar ao elevado número de religiosos que o iriam habitar. Construído depois da Igreja de São Roque, a igreja do Colégio de Jesus iniciou-se em 1598 e Baltazar Álvares, “arquiteto oficial” da Companhia de Jesus em Portugal, será o seu autor, apresentando uma evolução ao modelo lisboeta.

A fachada está inserida no modelo maneirista de Il Gesú e é composta por dois corpos sobrepostos separados por uma cornija, tendo na parte inferior cinco tramos divididos por pilastras toscanas. O frontispício de volumes robustos e estrutura de grande verticalidade é decorado com janelas simétricas e nichos com imagens de santos jesuítas. No final do século XVII foram acrescentadas duas torres recuadas em relação ao alçado principal, marcando a diferenciação em relação ao protótipo jesuíta de Roma.[1]

A planta segue o esquema em cruz latina, de abóbada tal como Il Gesú de Roma, apresentando um espaço interior de nave única, com transepto e capelas laterais intercomunicantes, e cruzeiro coberto por cúpula semiesférica com lanternim[2].


[1] Rui Pedro Lobo, Os Colégios de Jesus, das Artes e de São Jerónimo: Evolução e transformação no espaço urbano, Coimbra: [Ed. do A.], 1994 pp.30-31.

[2] Fresta para dar ar e luz.

In VEIGA, Francisca Branco. Noviciado da Cotovia: O Passado dos Museus da Politécnica 1619-1759. Dissertação (Mestrado em Património Cultural) – Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2009.

Segundo o modo nostro: o edifício do noviciado da Cotovia da Companhia de Jesus, 1619 – 1759

Mátria Digital, Ano X, Número X (Dezembro 2022 – Novembro 2023).

«… explica-lhes como o Templo está feito: o seu
traçado, as entradas e saídas, a forma, a disposição de tudo e
os regulamentos. Escreve tudo para que possam ler e vejam
como tudo está delineado …»


Livro de Ezequiel 43, 11-12

O artigo sobre o modo nostro no edifício do noviciado da Cotovia da Companhia de Jesus, instituição criada no espaço onde atualmente existe o Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MNHNC), tem como objetivo dar a conhecer a história e edificação deste espaço de educação e religião, no período entre 1619 e 1759.
Pelo estudo do espólio arquitetónico e artístico que chegou aos nossos dias e de fontes de informação com ele relacionado pretendeu-se demonstrar que combinando os fatores espirituais com os factores físicos, este espaço assumiu a sua forma exaltando-se o espírito do lugar de acordo com o modo nostro.
Assim, concebido para responder ao programa arquitetónico específico desta Ordem, o noviciado da Cotovia tornou-se uma
referência como primeiro noviciado da Companhia de Jesus na Província Portuguesa.

Palavras-chave: Companhia de Jesus – Noviciado – Arquitetura –História

VEIGA, Francisca Branco. “Segundo o modo nostro: o edifício do noviciado da Cotovia da Companhia de Jesus, 1619 – 1759”. In Mátria Digital, Ano X, Número X (Dezembro 2022 – Novembro 2023).

Revista cientifica MÁTRIA DIGITAL, DO Centro de Investigação Professor Joaquim Veríssimo Serrão (CIJVS)

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