A política colonial portuguesa pós Ultimato inglês

A critica política na cerâmica de Rafael Bordalo Pinheiro

O período que vai desde o fim da Conferência de Berlim até ao final do século foi sobretudo marcado, no tocante à nossa colónia oriental africana, pelas acções de João de Azevedo Coutinho (1865-1944) que chefiou a campanha do Chire contra os Macololos, cujo território estaria no centro da querela diplomática de 1890. A razão desta campanha nos rios Zanbeze e Chire estava na necessidade de vigiar os Macololos, que já tinham atacado o acampamento de Serpa Pinto, influenciados como estavam pelos ingleses da companhia African Lakes e ainda pelos missionários britânicos da zona. Azevedo Coutinho prossegue a sua campanha voltando a entrar em combate perto de Melanze (8 de dezembro de 1889), onde aprisiona o régulo Macololo Caterenguena.

No extremo Setentrional de Moçambique residia o Xeque que conspirava com o Sultão de Zanzibar contra Portugal. O governador de Moçambique, Augusto de Castilho (1841-1912) apresentou-lhe um ultimato de evacuação, o que não foi atendido, motivando assim a entrada em acção de Afonso de Albuquerque, secundado pela canhoneira Douro, auxiliados pelas forças do Exército vindos de Cabo Delgado. Tungue foi atacada e as tropas ocuparam-na após violento bombardeio. O sultão de Zanzibar pediu então a paz, que seria celebrada com o reconhecimento da baía em causa nos nossos limites territoriais.

As escaramuças com as tribos dos Macololos, obedientes à bandeira inglesa em 1888-89, na fronteira de Moçambique, são tema de chacota para algamas faianças de Bordalo, como a caixa em forma de cabeça de preto com turbante branco e colar, intitulada de “Macololo”, e a caixa em forma de cabeça de sultão rindo, com turbante branco e grande barba que tem na base a inscrição: “Sultão de Zanzibar”.

Seguiu-se outra campanha em Moçambique, a campanha de Magul, que durou de 19 de agosto a 21 de outubro de 1895, sob o comando de Alfredo Freire de Andrade (1865-1929) e Paiva Couceiro. Tratava-se de reduzir de vez os rebeldes landins em fuga, protegidos pelo poderoso régulo de Gaza, Gungunhana, com o qual Ene iniciara negociações com vista à entrega de foragidos às tropas portuguesas em Matibejana e Mahazul.

O Sultão de Zanzibar na publicação da “LANTERNA MÁGICA”

SULTÃO DE ZANZIBAR

A 3 de Setembro de 1895, a coluna punha-se em marcha a partir de Xinavane, atravessava o Incomati e dava combate aos Landins em Magul (8 de Setembro de 1895). Paiva Couceiro, que deixava por alguns momentos a coluna, indo a cavalo ao encontro dos revoltosos, intimava um deles, do seu conhecimento, a entregar Matibejana, sob pena de severas represálias; acabado o prazo concedido, a coluna passou o rio e deu-se a batalha de Magul, onde um quadrado de 320 homens fez frente a uns seis mil atacantes nativos, logrando-se então mais uma decisiva vitória portuguesa: Magul, comenta Enes, perdeu o Gungunhana (Enes, A guerra de África em 1895). A coluna destruíu em seguida diversas povoações inimigas, devastando cinco mangas rebeldes: com esta acção, Lourenço Marques ficava claramente livre de perigo vindo a converter-se depois em capital da colónia (1898).

Seguiu-se a campanha contra os Vátuas, rápida e vitoriosa. Gungunhana, o régulo rebelde, dominava um verdadeiro império que não se limitava à sua tribo, pois abarcava os territórios vizinhos e tinha ao seu dispor milhares de guerreiros. A revolta landim contava já com o seu apoio, embora Gungunhana continuasse a afirmar hipocritamente como respeitador da soberania portuguesa. Em 1895, derrotados os landins, havia, pois, que fazer frente aos vátuas. As operações começaram com as acções no Chicomo, que duraram de 30 de junho a 12 de dezembro, sob o comando do coronel Eduardo Galhardo (1845-1908). Em Coolela, assediado por milhares de Vátuas, uma vez mais o quadro português resistiu ao ataque e transformou o combate numa vitória de armas lusas (7 de novembro de 1895). «O combate, escreve Enes, não teve peripécias dramáticas. Foi um rápido duelo do moderno armamento europeu com a força bruta do número. Venceu fácilmente o armamento (…)» (ibidem).

Após a batalha junto da lagoa de Coolela, seguiu-se o ataque a Kraal de Gungunhana em Manjacaze, tomado e destruído, enquanto o régulo se punha em fuga.

A campanha teria pouco depois o seu epílogo com o feito de Chaimite (28 de dezembro de 1895). Mouzinho, então governador do distrito de Gaza, decidira aprisionar Gungunhana: arrastando consigo meia centena de homens, oficiais e soldados, e duas praças de indígenas avançou temerariamente, debaixo de chuva incessante, até Chaimite, a «a cidade santa dos Vátuas», onde penetrou com destemor, apesar das tropas negras que guardavam o chefe Vátua. Depois de mandar chamar o Gungunhana, deu-lhe ordem de prisão e mandou-o sentar-se no chão, o que significava a «humilhação do régulo diante da guerra preta», que levantou grande alarido, batendo com as azagaias nas rodelas em sinal de aplauso e temor. Dois dos conselheiros de Gungunhana, Manhune e Queto foram logo sumariamente fuzilados.

Em finais de 1897, Mouzinho voltou a Portugal, onde a sua recepção foi apoteótica, estando a recebê-lo o próprio rei D. Carlos, o príncipe D. Luís Filipe e o infante D. Afonso.

Rapidamente o herói africano se transformou num mito nacional cujas raízes iam decerto mergulhar na humilhação coletiva sentida seis anos antes com o Ultimato inglês. Basta ver, numa Gazeta da altura, a maneira como o Gungunhana preso chegou a Lisboa para nos apercebermos do impacto que os efeitos guerreiros em Moçambique tiveram na opinião pública lusa:

«Anteontem, 13, chegou enfim ao Tejo o transporte de guerra português, conduzindo a seu bordo os prisioneiros de guerra na Africa oriental. Entre esses prisioneiros, que simbolizavam tanta luta, tanta dor e tantos sacrifícios, destacava-se, como o mais importante de todos, o temido potentado negro Gungunhana, de quem os valorosos capitão Mouzinho, tenentes Couto e Miranda, apenas acompanhados de quarenta e seis esforçados soldados portugueses, conseguiram apossar-se. Essa prisão constitui o mais brilhante feito das armas portuguesas no nosso século. A República do Transval felicita Portugal, reconhecendo tacitamente quanto ganhou a segurança da África do sul com a prisão do Gungunhana» (O Ocidente, n° 620, de 15 de Março de 1896).

Dois exemplos do entusiasmo que a prisão do Gungunhana suscitou entre nós, na altura:

Augusto de Castilho, O Gungunhana (pref. de E. Borges de Castro), Lisboa, tipog. do Comércio de Portugal, 1896;

António Alves de Macedo, Aos bravos vencedores do Gungunhana (poema), Elvas, 1896.

GARRAFA «GUNGUNHANA» – ANTES

Representa o régulo negro antes da sua prisão por Mouzinho de Albuquerque.

Sobre a base, a identificação em letras relevadas: GUNGUNHANA – ANTES

Vidrado policromo.

Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha.

Ass. com o monograma de Rafael Bordalo Pinheiro e datado de 1895. Alt.: 250 mm

GARRAFA «GUNGUNHANA» -DEPOIS

Representa o régulo negro depois da sua prisão por Mouzinho de Albuquerque.

Sobre a base, a identificação em letras relevadas: GUNGUNHANA-DEPOIS

Vidrado policromo.

Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha.

Ass. com o monograma de Rafael Bordalo Pinheiro e datado de 1895. Alt.: 220 mm

Agora com a chegada do régulo Vátua sob terras portuguesas, estes orgulhavam-se do seu Império colonial e dos seus homens.

Em 1895, Bordalo Pinheiro cria mais uma peça em cerâmica, com o mesmo espírito crítico e mordaz, inspirada nas campanhas de Mouzinho de Albuquerque em Moçambique – as duas garrafas Gungunhana, antes e depois, o moringue e o cantil Gungunhana (1896).

Rafael Bordalo Pinheiro aos 25 anos.

Fotografia de Loureiro, 1871.

“Parodia: Comedia Portugueza”, 3º Ano, nº 107, Lisboa, 10.2.1905

Rafael Bordalo Pinheiro … Genuinamente português por constituição e por temperamento, de olhos pretos, nariz grosso, cabelo crespo, tendendo para a obesidade, ele é um sensual, um voluptuoso, um dispersivo, um desordenado. Uma das mais belas virtudes que ele não tem, é a que consiste em vencer os impulsos da natureza. Desgraçadamente, observa-se com frequência que os homens rígidos, que mais exemplarmente triunfam das próprias paixões, não triunfam de mais nada.

Ramalho Ortigão, 1891

Rafael Bordalo Pinheiro

(Lisboa, 21 de março de 1846 — Lisboa, 23 de janeiro de 1905)

Nascido no dia 21 de março de 1846 em família de artistas, Rafael Augusto Prostes Bordalo Pinheiro , filho de Manuel Maria Bordallo Pinheiro (1815-1880) e D. Maria Augusta do Ó Carvalho Prostes, cedo ganhou o gosto pelas artes. 

Rafael Bordalo Pinheiro foi não só o maior caricaturista e desenhador humorista do século XIX português, como um dos mais importantes e significativos artistas da sua geração, a par do seu irmão Columbano e de José Malhoa.

Estruturalmente caricaturista, por gosto, por temperamento, não teve escolas, não seguiu métodos. Ele mesmo declarava em 1903, quando a Associação dos Jornalistas de Lisboa lhe fez uma grande homenagem nacional:

“Sabe porque comecei a fazer caricaturas? A razão é semelhante à que levou Justino Soares a professor de dança. O Justino a quem lhe perguntava porque tinha deixado o ofício e se tinha metido a dançarino respondia: O menino comecei a sentir um formigueiro nas pernas e vai puz-me a dançar. Ora comigo dá-se um caso idêntico. Comecei a sentir um formigueiro nas mãos e vai puz-me a fazer caricaturas…”

Espírito irrequieto, Bordalo não via a sociedade só pelas qualidades exteriores, ia mais longe, aprofundava o carácter da mesma, a tal ponto que, muitas vezes com apenas um traço e todo o desassombro da sua independência, dava a conhecer uma personagem.

A sua obra bem-humorada, reflete uma época cheia de tolerância, caracterizada pela «doce paz» do reinado de D. Luís, e que a história denominou de “paz podre”.

Foi caricaturista de raça, na fertilidade das suas obras e na imaginação que lhes impunha. Como jornalista, ele reproduziu a atualidade como ninguém. Entre 1870 e 1905 tornou-se na alma critica e muito assaz de todos os periódicos que dirigiu quer em Portugal, quer nos três anos que trabalhou no Brasil.

Espontâneo na caricatura será através da cerâmica que a sua individualidade também persistirá, tendo aceitado o convite para chefiar o setor artístico da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. O que notabilizou a interferência de Bordalo Pinheiro na faiança caldense foi o impulso estimulador de uma nova era de renascimento, que o artista transmitiu não só pelo exemplo, como ensinando a alguns artífices o desenho por eles completamente ignorado até então. Onde se revelava mais exuberantemente a sua boa influência era no apuramento e perfeição do esmalte e na unidade e riqueza da cor.

Ramalho Ortigão, depois de ver as peças criadas por Bordalo, declarou que a sua faiança era «um capítulo de Folclore português», tendo Bordalo «criado um novo estilo decorativo genuinamente nacional».

A história da sociedade portuguesa do último quartel do século XIX, nos seus múltiplos aspetos, está toda documentada nos seus jornais humorísticos. A política foi para ele um vício que satisfazia no Chiado, o seu «habitat», mas também uma ação cívica consciente e patriótica e, por isso, necessariamente crítica. E, acima de tudo, foi uma ação independente, alheia a partidos e seus interesses, mal vista por progressistas ou regeneradores e também, às vezes, pelos republicanos da sua simpatia. Em 1885, ele afirmava, «As minhas opiniões, boas ou más, não se subordinaram nunca ao “mot d’ordre”».

Por isso o povo (ou o «povinho») o chorou sinceramente, à sua morte, no dia 23 de janeiro de 1905.

Rafael Bordalo Pinheiro

A 12 de junho de 1875 criou a figura do Zé Povinho. É a figura de um homem comum eternamente explorado e enganado pelos políticos. Foi utilizado como símbolo dos republicanos, numa altura em que a República aflorava como esperança para a saída da profunda crise em que o país estava mergulhado. Nele se via a crítica mordaz ao pagamento de impostos, ao peso fiscal ou à espoliação por parte dos políticos.

Gravura:
Primeira caricatura do personagem “Zé Povinho”, in “A Lanterna Mágica”, nº 5, 12 de Junho de 1875.
Descrição:
Representa o Ministro da Fazenda, Serpa Pimentel, a sacar ao Zé Povinho uma esmola de três tostões para Santo António de Lisboa (representado por Fontes Pereira de Melo) com o “menino” (D. Luís I) ao colo, tendo ao lado o comandante da Guarda Municipal, de chicote na mão, presente para prevenir uma eventual resistência.

Tomou forma tridimensional pelas mãos do seu criador, na Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, no último quartel do século XIX. Bordalo Pinheiro definiu-o da seguinte forma: “O Zé Povinho olha para um lado e para o outro e… fica como sempre… na mesma“.

CAIXA «ORA TOMA»
O recipiente tem a forma dum barril e a tampa representa o busto do Zé Povinho fazendo o gesto do «Toma». O busto pousa numa base circular com identificação em letras relevadas: TOMA
Barro vidrado policromo, com exceção do rosto que é apenas policromado.
Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. Exemplar datado de 1904. Alt.: 255 mm

Caricatura de Zé Povinho e Rafael Bordalo Pinheiro na Estação Aeroporto do Metropolitano de Lisboa, 2012.