Em Lisboa, no Largo Trindade Coelho, ergue-se a Igreja de São Roque, antiga Casa Professa da Companhia de Jesus, onde os Jesuítas exerceram a sua missão durante mais de dois séculos, até à sua expulsão de Portugal, em 1759. Esta foi a primeira igreja jesuíta em território português e uma das primeiras em todo o mundo.
No ambiente singular da sacristia da Igreja de São Roque, encontram-se catorze pinturas que narram a envolvente história do Ciclo da Vida de Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus.
Estas obras têm por base as gravuras da obra Vita Beattii Patris Ignatii Loyolae Religionis Societatis Iesu Fundatoris ad Vivum Expressa ex ea quam, da autoria do padre jesuíta Pedro de Ribadeneira, publicada em 1610, em Antuérpia, por Cornelis Galle. A edição inclui dezasseis buris produzidos por Cornelis e Theodore Galle, bem como por Adrien e Johann Collaert e Charles de Mallery.
De acordo com diversos historiadores de arte, seis destas pinturas poderão ser atribuídas a Domingos da Cunha, conhecido como o Cabrinha, artista jesuíta com obra reconhecida. Apresentam semelhanças compositivas e técnicas que sugerem terem sido reaproveitadas para São Roque, ou então executadas especificamente do antigo Noviciado da Cotovia. Apesar das dúvidas e críticas que persistem quanto à montagem e autoria, estas telas mantêm-se como peças centrais para a compreensão da história do Noviciado e do valioso espólio jesuíta que chegou até nós — mas também da própria história da arte sacra em Portugal.
As seis obras atribuídas a Domingos da Cunha são:
Quadro nº 3: Santo Inácio entrega as roupas a um pobre
Quadro nº 4: Santo Inácio no Monte Olivete, Jerusalém
Quadro nº 5: O senador Trevisano descobre Santo Inácio adormecido sob as arcadas de S. Marcos, em Veneza
Quadro nº 9: O O Papa Paulo III aprova a Companhia de Jesus
Quadro nº 13: O rapto de Santo Inácio em Manresa
Quadro nº 14: Ao ouvir um sermão, saem raios da cabeça de Santo Inácio
Este conjunto artístico constitui um dos mais expressivos testemunhos do legado jesuíta em Portugal, unindo espiritualidade, pedagogia visual e arte barroca numa narrativa que continua a fascinar os visitantes e investigadores.
Quadro: O Senador Marco António Trevisani encontra Inácio de Loyola sob as arcadas de São Marcos em Veneza
Num recente leilão de antiguidades e obras de arte moderna e contemporânea realizado em Lisboa pela Cabral Moncada Leilões, em 3 de dezembro de 2019, foi leiloado um quadro que representa O Senador Marco António Trevisani encontra Santo Inácio de Loyola a dormir sob as arcadas de São Marcos, em Veneza. De acordo com Vítor Serrão, esta obra é atribuída a Domingos da Cunha, pintor da Companhia de Jesus. Segundo Vítor Serrão, a pintura foi executada para a série destinada ao noviciado da Companhia de Jesus, por volta de 1635.
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VEIGA, Francisca Branco, O Ciclo da Vida de Santo Inácio de Loyola na Sacristia da Igreja de São Roque (blogue da autora Francisca Branco Veiga). Disponível em: https://franciscabrancoveiga.com/ [23 de julho de 2025].
Fernão Teles de Meneses. @franciscabrancoveiga Autor (es) Desconhecido Datação c. 1630-40 Proveniência Noviciado da Cotovia Inscrição: Maiúsculas, no canto inferior esquerdo: FERNAN TELLES / DE MENEZES / FVNDADOR DES / TA CAZA DA PRO / VAÇAM DA COMPª / DE IHS
Pintura de aparato de Fernão Teles de Meneses, fundador do Noviciado da Cotovia, datada do século XVII (c. 1630–1640), de autoria desconhecida, possivelmente de origem espanhola. Proveniente da antiga sacristia da igreja do noviciado, encontra-se atualmente à guarda do MUHNAC.
A composição apresenta uma forte carga iconográfica associada ao período filipino, evidenciada, entre outros elementos, pela armadura filipina que enverga. Fernão Teles de Meneses empunha um bastão de comando, símbolo da sua função de Governador das Índias, enquanto a luva destacada remete para o seu cargo de Governador do Algarve. Ao peito ostenta a Cruz de Cristo, insígnia honorífica [1].
O fundo da pintura é composto por um cenário de aparato, onde se destaca uma mesa coberta com um manto ricamente bordado e um reposteiro, possivelmente em veludo, com pregas pronunciadas e pendentes decorativos. A tela parece articular os dois mundos da figura retratada: o do guerreiro e o do político.
Do ponto de vista pictórico, observa-se um certo desequilíbrio na execução: embora a generalidade da composição revele uma pintura de grande qualidade, as feições da figura central apresentam menor rigor técnico, o que poderá indicar a intervenção de mais do que um artista. A obra caracteriza-se ainda por um claro-escuro marcadamente intenso.
A moldura não é original, sendo provavelmente do século XIX. A pintura apresenta repintes e evidências de restauro em zonas da tela anteriormente rasgadas.
No canto superior esquerdo, encontra-se um escudo partido com as armas de Fernão Teles de Meneses e de sua esposa, D. Maria de Noronha: o primeiro esquartelado com leões altivos e campo liso (Teles de Meneses); o segundo com as armas do Reino, relativas à família Faro [2]
A pintura foi restaurada por Francisco Bueto (?), em 30 de junho de 1878 (AHMUL, Conta_Jul_1878_doc59).
Em todas as gravuras a imagem de Fernão Teles de Meneses exibe um medalhão da Ordem Honorífica que lhe foi atribuída e que lhe conferiu o grau de Comendador.
Origens na Ordem dos Templários
A Cruz de Cristo tem origem na Ordem dos Templários, uma ordem religioso-militar fundada no século XII com o propósito de proteger os peregrinos cristãos na Terra Santa.
Com a extinção da Ordem dos Templários pelo Papa Clemente V, em 1312, o rei D. Dinis procurou garantir a continuidade dos bens e da missão dos Templários em Portugal. Para isso, solicitou ao Papa a criação de uma nova ordem.
Criação da Ordem de Cristo (1319)
Em 1319, o Papa João XXII autorizou oficialmente a fundação da Ordem de Cristo em Portugal.
Esta nova ordem:
Herdou os bens e propriedades dos Templários em território português.
Adoptou a cruz vermelha, que viria a ser conhecida como Cruz de Cristo, como símbolo.
A Cruz de Cristo e os Descobrimentos
Durante os séculos XV e XVI, a Cruz de Cristo tornou-se um símbolo fortemente associado aos Descobrimentos Portugueses.
Era pintada nas velas das naus e caravelas, como as de Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral.
Representava a fé cristã, o poder da Coroa Portuguesa e a missão evangelizadora das explorações ultramarinas.
Da Ordem Religiosa à Ordem Honorífica
Com o passar do tempo, a Ordem de Cristo ficou cada vez mais subordinada à autoridade real.
Em 1834, com a extinção das ordens religiosas em Portugal, a ordem foi secularizada.
Passou a ser usada como uma ordem honorífica do Estado, concedida a quem prestasse serviços relevantes à Nação.
Ordem Militar de Cristo (actualidade)
Hoje em dia, a Ordem Militar de Cristo é uma das Ordens Honoríficas Portuguesas, atribuída pelo Presidente da República.
É conferida a cidadãos (portugueses ou estrangeiros) que se tenham distinguido por:
Serviços relevantes prestados ao Estado Português.
Mérito nas áreas da administração pública, diplomacia, ou carreira militar.
Insígnia e Graus
Existem vários graus honoríficos, como: Cavaleiro, Oficial, Comendador, Grande-Oficial, e Grã-Cruz.
O símbolo da ordem é a Cruz de Cristo – uma cruz vermelha com braços em forma de flor-de-lis.
@franciscabrancoveiga [2] O seu brasão apresenta-se dividido verticalmente em duas partes. No lado esquerdo, ocupando o primeiro e o quarto quartel, figura um leão rampante. No lado direito, sete torres quadradas de ouro, lavradas a negro e dispostas em 3, 2, 2, preenchem o campo. Ao centro, encontram-se cinco escudetes azuis dispostos em cruz, cada um carregado com cinco besantes de prata colocados em sautor, todos inseridos num contorno. O fundo vermelho desta secção simboliza a vitória, a fortaleza e a ousadia.
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In VEIGA, Francisca Branco. Noviciado da Cotovia 1619-1759. Ed. Autor, 2025.
VEIGA, Francisca Branco, RETRATO DE FERNÃO TELES DE MENESES, Fundador do Noviciado da Cotovia (MNHNC) (blogue da autora Francisca Branco Veiga). Disponível em: https://franciscabrancoveiga.com/ [28 de maio de 2025].
Encontra-se em paradeiro desconhecido a pintura a óleo de grandes dimensões que adornava o altar-mor da igreja do Noviciado da Cotovia, da Companhia de Jesus, local onde atualmente se encontram o Museu Nacional de História Natural e da Ciência.
Assunção da Virgem. Pintura de Domingos da Cunha
Datada de 1635, a sua iconografia representa a Assunção da Virgem. Um manuscrito da Biblioteca Nacional de Portugal sobre a História de Lisboa refere que a Capela-mor da igreja deste noviciado jesuíta era notavelmente bem proporcionada e possuía no retábulo uma pintura da autoria do pintor Domingos da Cunha.
«…o lugar onde deveria estar a tribuna exibia um grande e belo painel que representa a subida da Virgem Senhora para o Céu, assistida pelos sagrados Apóstolos e pelos coros dos anjos, que a acompanham no seu triunfo. Obra de um religioso da mesma casa, que não só foi insigne na arte da pintura, mas também na virtude e perfeição religiosa…»[1]
Raul Lino, na sua obra Documentos Para a História da Arte em Portugal, regista um episódio significativo relacionado com o inventário e o sequestro de bens pertencentes à Casa do Noviciado de Nossa Senhora da Assunção da Cotovia. Este processo foi conduzido por ordem de Sua Majestade Fidelíssima e supervisionado pelo Real Erário, tendo a remessa e transferência dos bens ocorrido a 5 de outubro de 1759, no contexto da extinção da Companhia de Jesus em Portugal.
O documento detalha o espólio do altar-mor da referida Casa, que incluía um retábulo com a imagem da Senhora da Assunção, executada em pintura sobre madeira, adornado com cortinas de tela bordadas a ouro, evidenciando a riqueza decorativa da época[2].
A última referência a este painel foi feita por Gustavo de Matos Sequeira, em 1916, que informou que a referida pintura se encontrava, à data, numa arrecadação do último corredor norte do edifício do atual Museu Nacional de História Natural e da Ciência, juntamente com outros objetos do antigo noviciado, onde haviam sido depositados «…depois do incêndio de 1843»[3]. Já em 1936, Costa Lima não conseguiu localizá-la nesse sítio[4].
Neste painel, eram claramente visíveis as influências do seu mestre, Eugénio Caxés, dentro dos cânones naturalistas madrilenos, que, segundo Vítor Serrão, se evidenciavam «na agitação das formas barrocas da Virgem e da glória angelical, e na pose dos Apóstolos em contemplação, que rodeiam o túmulo em baixo, lembrando os da Assunção da Virgem de Eugénio Caxés (1618), no Mosteiro de Guadalupe, ou os da tela do Museo Cerralbo, em Madrid»[5].
A pintura Assunção da Virgem, de Domingos da Cunha, constitui não apenas um testemunho da excelência artística no seio da Companhia de Jesus no século XVII, mas também um vestígio simbólico de uma época marcante da história religiosa e cultural portuguesa. O seu percurso — desde o destaque no altar-mor do Noviciado da Cotovia até ao seu desaparecimento, na sequência da extinção da Ordem e do incêndio de 1843 — reflete as transformações operadas pela passagem do tempo, bem como as mudanças políticas, religiosas e patrimoniais que marcaram os séculos XVIII a XX. A perda desta obra, atualmente apenas documentada em fontes manuscritas e registos eruditos, sublinha a importância da preservação do património e da investigação histórica na reconstituição de memórias artísticas esquecidas. Embora o seu paradeiro continue por apurar, a memória desta pintura permanece viva como símbolo de uma arte devocional que serviu não só a fé e a doutrina, mas também os projetos espirituais e ideológicos da Companhia de Jesus.
[1] BNP, cód. 145 e 429, Capítulo XV, Da Casa do Noviciado da Companhia de Iesus, s.p.
[2] Raúl Lino, “Noviciado da Cotovia e Hospício de São Francisco de Borja [do] Arquivo do Tribunal de Contas”. In Raul Lino, [et al], Documentos para a história da arte em Portugal, vol. 4, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969.
[3] Sequeira, Depois do terramoto, Lisboa: Academia das Sciências, 1916, pp. 252-254.
[4] J. da Costa Lima, “Para a identificação da obra do Mestre Cabrinha”, In Brotéria cultural, vol. XXIII, 1936, p. 29.
[5] Vítor Serrão, A pintura Proto-Barroca em Portugal, 1612-1657. Coimbra: [s.n.], 1992, p. 135.
Noviciado da Cotovia 1619-1759 – O Primeiro Noviciado da Companhia de Jesus na Província Portuguesa
Uma pesquisa apaixonada que convida a entrar no mundo do primeiro noviciado da Companhia de Jesus em Portugal.
Situado no local onde hoje se encontra o Museu Nacional de História Natural e da Ciência, este noviciado teve um papel decisivo na formação religiosa e académica jesuíta entre os séculos XVII e XVIII. Através do estudo do espólio preservado e das fontes históricas associadas, procurei reconstruir o passado deste edifício e da sua comunidade, explorando também o papel da Arte Sacra, tão presente na sua igreja e nos seus espaços.
Este trabalho oferece uma visão integrada da história, arquitetura, ensino e arte no Noviciado da Cotovia, inserindo as suas peças no contexto artístico da época e valorizando a memória cultural deste património muitas vezes esquecido.
Depois de anos de investigação apaixonada, sinto-me honrada por poder partilhar esta obra, na esperança de que proporcione uma leitura rica e envolvente a todos os que se interessam pela história de Portugal, pela arte religiosa e pelo património jesuíta.
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Como referir este texto:
Sendo um blogue com conteúdos de criação intelectual privada, estão protegidos por direitos de autor. Seja responsável na utilização e partilha dos mesmos!
VEIGA, Francisca Branco, Noviciado da Cotovia 1619-1759 (blogue da autora Francisca Branco Veiga). Disponível em: https://franciscabrancoveiga.com/ [24 de Março de 2025].
O livro está disponível para aquisição em formato físico na Amazon, e convido todos a conhecerem esta parte fascinante da nossa história.
Não tendo como pretensão o estudo aprofundado da iconografia na Companhia de Jesus, achei conveniente mostrar que um programa cultual e de doutrinação teve como consequência a criação de uma arte religiosa muito própria da Companhia de Jesus ao nível da arquitetura, da pintura, da escultura, da ourivesaria.
1619 – Inauguração do noviciado da cotovia – Encontramo-nos num período de reforma católica referido como Contra-reforma que se caracterizou por um movimento de reafirmação dos princípios da doutrina e da estrutura da Igreja Católica, diante do movimento de Reforma Protestante na Europa do século XVI. O Papa Paulo III convocou este concílio para assegurar a unidade de fé e a disciplina eclesiástica.
Na última sessão do Concílio de Trento (1545 – 1563), definiu-se de forma explícita e intencional que a arte deve estar ao serviço dos ritos da igreja católica.
Dos decretos tridentinos transparece uma nova forma de ver a imagem sagrada, onde o “ver” uma coisa com desejo e com intenção equivalia a possuí-la.
A Companhia de Jesus nasce, neste período, como um instrumento na definição do ideal de uma Igreja reformada.
4. História do noviciado
O noviciado da Cotovia surge da necessidade de se criar um espaço único para a formação de noviços destinados ao oriente para evangelizar.
Em 1540 D. João III irá ser o primeiro rei na Europa a contactar Inácio de Loyola devido à necessidade de encontrar missionários, homens letrados, para evangelizar o Oriente, pregando e convertendo à Fé cristã os nativos
Surge a figura de Fernão Teles de Meneses benemérito que doou toda a sua fortuna para a construção deste noviciado, virado para o Tejo de onde se via os barcos partirem. Com bons ares e fora das muralhas fernandinas.
Entram os primeiros noviços em 1619 e são expulsos deste espaço em 1759.
Ocuparam este espaço durante 140 anos, ligados ao ensino e formação de jovens destinados às missões do oriente.
5. Enquadramento religioso e artístico
Relativamente à Companhia de Jesus esta rapidamente respondeu a esta igreja reformada.
Foram várias as contribuições para que se possa falar de um “estilo jesuítico”: Ao nível interno, as Constituições, A Formula do Instituto, a auto biografia de Sto Inácio de Loiola, tal como, os Exercícios Espirituais; a nível externo, o Concílio de Trento, as Instrução de S. Carlos Borromeu ou o Tratado de São Roberto Belarmino.
Estas, São as linhas essenciais que vão configurar a prática cultual e devocional e que vão ditar iconograficamente toda a Arte.
A vida cultual é regrada e normalizada de acordo com o tipo de indivíduo.
A prática devocional da Companhia orienta-se, de forma clara, em quatro vertentes: Trinitária, Cristológica, Mariana e Hagiográfica
Deste modo, estes religiosos conseguiram interpretar os princípios estéticos vigentes no mundo católico pós reforma.
6. Tipologia da Coleção
O espólio do noviciado é composto por sessenta peças, essencialmente, objetos que serviram ao culto na Igreja de Nossa Senhora da Assunção, enriquecido com alguns paramentos que vieram da China e relicários de Itália.
Ao espólio do noviciado da Cotovia que se encontra no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, poderíamos adicionar pinturas e esculturas da igreja do antigo noviciado dispersas em diversas instituições de Lisboa
7. PINTURA FTM
Encontramo-nos no período de governação espanhola. FTM a 3 de Novembro de 1581 jurou e fez jurar o novo rei Filipe I em todo o estado da Índia.
Assim, ao observarmos o estilo de pintura aplicado no retrato sentimos que esta se aproxima da tradição tenebrista espanhola, da utilização pictórica do claro-escuro, como pintura de aparato e de representação. Iconograficamente muito ligado ao período filipino, pois tem como indumentária uma armadura filipina.
Muito idêntica à dos pintores Bartolomé González e Juan Pantoja de la Cruz .
Na tradição do retrato tem-se o cuidado de mostrar cuidadosamente rendas, vestidos e joias dos seus modelos, com postura rígida, e colocando um fundo de aparato. As mãos também são desenhadas com precisão, segurando um bastão, símbolo de comando. A luva destacada serve de reconhecimento da sua posição de Governador. Com Cruz de Cristo ao peito. Nesta tela visualiza-se os dois mundos de Fernão Teles de Meneses, o de guerreiro e o de político. É visível ao nível pictórico um desequilíbrio, mostrando uma pintura excelente na totalidade mas ao nível da feições a qualidade não é a mesma, denotando que provavelmente foram duas pessoas a pintá-la.
8. ESCULTURA TUMULÁRIA
Foram as sepulturas régias da capela-mor de Santa Maria de Belém que deram início a um conjunto de monumentos funerários tipologicamente idênticos
Na Capela-mor das Igrejas da Companhia de Jesus encontramos sempre o túmulo do fundador, conforme impunham as Constituições (309-310), além de testemunhar o sentimento de gratidão à figura benemérita do Fundador (312-314.
Existem duas ordens de razões para a grande aceitação deste tipo de fórmula: por um lado, o prestígio associado a monumentos fúnebres régios, e, por outro, o facto de a realização deste modelo não implicar, a nível técnico, a necessidade de grandes recursos ou apresentar particulares dificuldades.
Nível formal – composto por essas e suporte
Nível simbólico
Ásia simbolizava o poder real
arte oriental o elefante como elemento de suporte é simbólico de animal-suporte-do-mundo: o universo repousa sobre o lombo de um elefante.
Ocidente simbolizava eternidade, temperança, piedade, associadas à soberania, ao poder e à riqueza.
Nível técnico – não implica grandes recursos manuais e de especialidade.
O que cativou a realeza e a nobreza por este tipo de sepultura terá sido o seu aspeto em pirâmide e o material utilizado (mármores).
9. ESCULTURA
As esculturas do noviciado da cotovia seguem as normas saídas do Concílio de Trento, refere-se à Invocação e Veneração às Relíquias dos Santos e das Sagradas Imagens da seguinte maneira:
“…declara este santo concílio, que as imagens devem existir, principalmente nos templos, principalmente as imagens de Cristo, da Virgem Mãe de Deus, e de todos os outros santos, e que a essas imagens deve ser dada a correspondente honra e veneração…» e «…que as imagens não sejam pintadas com formosura dissoluta…”.
“… se consegue muitos frutos de todas as sagradas imagens, não apenas por recordarem ao povo os benefícios e dons que Cristo lhes concedeu, mas também porque se expõe aos olhos dos fiéis os salutares exemplos dos santos milagres que Deus lhes concedeu,”
Santo Inácio nos Exercícios Espirituais (47), propõe o uso da visão e da imaginação como um recurso para que a oração se torne concreta. “…ver, com a vista da imaginação, o lugar material onde se acha aquilo que quero contemplar…”
As esculturas do noviciado da Cotovia são maneiristas, do início do século XVII, fidelizadas a parâmetros de imaginária sacra portuguesa, tipo esculturas de Gonçalo Rodrigues que trabalhou para uma clientela religiosa e tradicionalista.
A escultura é representada com equilíbrio e síntese no tratamento volumétrico, com serenidade expressiva e gestual.
A escultura da Virgem com o Menino Salvador do Mundo é uma imagem de vulto, em madeira de carvalho setentrional, estofada e policromada, apresentando grande delicadeza na sua postura.
A escultura de S. Paulo, com estofo em tons vermelho e verde e com vestígios de policromia floral e geométrica, com desenho de linha a dourado. Simbolicamente, teria uma espada aludindo ao seu martírio, pois foi decapitado, mas também é símbolo da palavra divina por ele anunciada, como diz a Carta aos Hebreus: “a palavra de Deus é viva e eficaz, mais penetrante que uma espada de dois gumes” (Hb 4, 12). Existem referências ao local onde se encontrava: Na sacristia encontrava-se «…em cima do caixão duas imagens de vulto, uma de S. Pedro, outra de S. Paulo, ambas de cinco palmos com resplendores de folha prateada…».
A escultura de Cristo estaria na sua origem atado a uma coluna. Esta imagem está associada à flagelação de Cristo. A cena da Flagelação, tal como os outros episódios da Paixão é, a partir do século XVI, representada com grande dramatismo, com Cristo atado a uma coluna e ladeada dos verdugos. Quando a cena se encontra despida de todo e qualquer elemento (verdugos, açoites) transforma-se numa imagem de grande devoção, como é o caso deste exemplar do noviciado da Cotovia. A coluna à qual Jesus geralmente aparece amarrado, e a corda, o flagelo, são elementos tipo que aparecem na Arma Christ. Com estas imagens os escultores praticavam a criação do nu, proibido pela igreja pois era considerado indecoroso e desonesto
10. PARAMENTARIA
Na paramentaria impera o princípio do culti decori, onde a sacralidade da função está associada à riqueza dos materiais. Servem para glorificar a Deus de maneira mais nobre e eficaz.
A função dos paramentos, ricamente bordados, é decorativa mas também serve «…de reforço do mecanismo de atracão dos sentidos dos crentes.»
Concílio de Trento, Sessão XXII refere-se ao aparato na celebração da missa da seguinte maneira:
aquele que «…disser que as cerimónias, vestimentas, e sinais externos que usa a Igreja Católica na celebração das Missas, são muito mais incentivos de impiedade que obséquios piedosos, seja excomungado» (Cân. VII).
Para a igreja católica, as vestes representam Cristo cheio de glória.
Importam-se as novas tendências do Oriente exótico. Chegam a Lisboa, – a cidade europeia mais cosmopolita – como produto exótico, muito atrativo e a baixo custo, devido à utilização de mão-de-obra barata.
No Frontal de altar da igreja do noviciado da Cotovia vamos encontrar símbolos chineses: no campo central uma águia bicéfala; nas laterais, um vaso bojudo com crisântemos e peónias; é ladeado por um dragão e por um leão a brincar com a bola de brocado. No centro da barra, inscreve-se, em cartela circular com resplendor raiado, a inscrição IHS, emblema dos jesuítas.
O Véu de cálice, é em seda creme de origem chinesa, tem um estampado com imagens de crisântemos e galhos de frutos. Ao centro, inscreve-se, em cartela circular com raios setiformes, lisos e em serpentina, alternantes, a inscrição IHS.
11. MISSAL
Inseridos no espólio do noviciado da Cotovia encontram-se três Missais dos séculos XVII e XVIII d.C..
O missal Romano contém as leituras da Missa
Pio V em 1570, através da bula Quo primum tempore, definiu o novo Missal Romano com o fim de eliminar os abusos cometidos na celebração da missa.
«…de tal sorte que os padres saibam de que preces devem servir-se e quais os ritos, quais as cerimonias, que devem observar doravante na celebração das Missas»
Lê-se: as missas de acordo com o tempo litúrgico (Advento, Natal, Quaresma, Tríduo Pascal, Tempo Pascal e Tempo Comum); O Rito da Missa (Ritos Iniciais, Liturgia da Palavra, Liturgia Eucarística (ofertório e prefácios), o Rito da Comunhão e os Ritos Finais); Apêndice do Rito da Missa (Bênçãos Solenes e Orações sobre o povo.
Este missal é da Primeira metade do séc. XVIII d.C. (1732). A capa é centrada pela imagem de Santo Inácio segurando com as mãos o livro da “Regra” da Companhia em que está inscrita a divisa AD MAIO DEI GLO REG SOC IESV, encimado por uma coroa e anjo, tudo em prata. Na contracapa a ornamentação é idêntica mas tendo ao centro a imagem de S. Francisco Xavier com lírios, atributo alusivo à pureza.
Várias gravuras a buril ornamentam o texto: a Adoração do Santíssimo, a Anunciação, o Nascimento do Menino Jesus, o Calvário e a Ressurreição
12. RELICÁRIO
Da igreja do Noviciado da Cotovia chegou-nos este relicário em prata que é testemunho da veneração que se prestava aos Santos e aos Mártires
A exposição das relíquias dos santos era, nesta época pós-tridentina, um poderoso meio de propaganda religiosa.
Santo Inácio de Loyola, afirmava que se devia venerar as relíquias, tendo a mesma fé e devoção que perante as imagens dos santos.
Nos Exercícios Espirituais, Santo Inácio de Loyola escreve:
«Louvar as relíquias dos Santos, venerando-a estas e rezando a eles.»
O Concílio de Trento na sessão XXV referiu-se às relíquias da seguinte maneira:
«Ordena o Santo Concílio a todos os Bispos e demais pessoas que tenham o encargo ou obrigação de ensinar… sobre a intercessão e invocação dos santos, honra das relíquias e uso legítimo das imagens…».
«… também os condena a Igreja, aos que afirmam que não se deve honrar nem venerar as relíquias dos santos, ou que é vã a veneração que estas relíquias e outros monumentos sagrados recebem dos fiéis…»
Era importante transmitir ao povo crente que o culto das relíquias servia de veículo para estes alcançarem a Salvação.
Quase todas as casas da Companhia de Jesus receberam relíquias vindas de Roma e da Alemanha. A igreja de S. Roque, em Lisboa, é um bom exemplo da atitude da Companhia face às relíquias.
Eram frequentemente escolhidos para adornar os altares pois exerciam um poder enigmático sobre o crente.
Este relicário é de origem italiana com as marcas da Contrastaria de Roma (chaves cruzadas e umbela) e a do ourives: leão rampante (esta marca apresenta-se defeituosa, dificultando a sua leitura e justifica a interrogação da autoria).
Relicário em forma de custódia, realizado com folha de prata aplicada sobre estrutura de madeira e assente sobre base de madeira dourada, de secção triangular, mistilínea e moldurada, com relíquias correspondentes aos dois irmãos coadjutores João Soan (de Goto) e Diogo Kisai, martirizados em Nagasaki a 5 de Fevereiro de 1597; canonizados apenas em 8 de Junho de 1862 por Pio IX mas já anteriormente venerados no contexto da Companhia de Jesus.
Concluindo,
[19, 20 e 21 novembro 2014
I SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DE COLECÇÕES Investigação recente e novos olhares – Da Cotovia ao Museu Nacional de História Natural e da Ciência –
21 DE NOVEMBRO 2014 │DIA 3
Anfiteatro Manuel Valadares
5ª SESSÃO │HISTÓRIA DE COLECÇÕES: ARTE, CIÊNCIA E LIVROS
9h30 │O espólio do noviciado da Cotovia: A obra de arte total como programa cultual e de doutrinação ]
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Como referir este texto:
Sendo um blogue com conteúdos de criação intelectual privada, estão protegidos por direitos de autor. Seja responsável na utilização e partilha dos mesmos!
VEIGA, Francisca Branco (2023), O espólio do noviciado da Cotovia: A obra de arte total como programa cultual e de doutrinação (blogue da autora Francisca Branco Veiga). Disponível em: https://franciscabrancoveiga.com/ [9 de Março de 2023].
Noviciado da Cotovia – Fachada, 1863 (Archivo Pittoresco, 1863)
Resumo
Este artigo sobre o noviciado da Cotovia da Companhia de Jesus, instituição criada no espaço onde atualmente existe o Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MNHNC), tem como objetivo dar a conhecer a história e edificação deste espaço de educação e religião, no período entre 1619 e 1759.
Pelo estudo do espólio arquitetónico e artístico que chegou aos nossos dias e de fontes de informação com ele relacionado pretendeu-se demonstrar que combinando os fatores espirituais com os factores físicos, este espaço assumiu a sua forma exaltando-se o espírito do lugar de acordo com o modo nostro.
Assim, concebido para responder ao programa arquitetónico específico desta Ordem, o noviciado da Cotovia tornou-se uma referência como primeiro noviciado da Companhia de Jesus na Província Portuguesa.
Palavras-chave: Companhia de Jesus – Noviciado – Arquitetura – História
Abstract
This article about the novitiate of the Cotovia da Companhia de Jesus, an institution created in the space where the National Museum of Natural History and Science (NMNHS) currently exists, has the objective of reviewing the history and construction of this education and religion space, in the period between 1619 and 1759.
By studying the architectural and artistic heritage that has come to our days and the sources of information related to it, it was intended to demonstrate that combining spiritual with physical factors, this space built its shape, exalting the spirit of the place according to the modo nostro.
Thus, conceived to respond to the specific architectural program of this Order, the Cotovia novitiate became a reference as the first novitiate of the Society of Jesus in the Portuguese Province.
Keywords: Society of Jesus – Novitiate – Architecture – History
Introdução
Partindo do título deste artigo Segundo o modo nostro: o edifício do noviciado da Cotovia da Companhia de Jesus, 1619 – 1759 é nosso propósito fazer um estudo sobre a arquitetura do edifício dos atuais Museus da Politécnica (MNHNC), no período de 1619 a 1759, isto é, desde o início do noviciado jesuíta até à expulsão da Companhia de Jesus de Portugal.
Depois de fazer um estudo do espólio que chegou até nós e que se encontra nos reservados do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, sentiu-se ser pertinente efetuar uma recolha de informação documental, com uma perspetiva de análise nunca realizada até hoje.
Como orientação desta análise, optou-se por uma metodologia de organização documental, baseada numa abordagem histórica e interpretativa do programa arquitetónico específico da Companhia de Jesus. Desta forma, iremos focar-nos, principalmente, em dois temas: a histórica do edifício nos 140 anos da existência do noviciado e a arquitetura dos seus espaços, inserindo-os no pós Concílio de Trento e nas instruções da Companhia de Jesus para a criação de edifícios jesuítas.
A arquitetura do edifício pensada pelo arquiteto Baltasar Alvares segue a linha do modo nostro jesuíta, onde a atenção ao método, materiais e coerência funcional tinha como fim último a criação de dois espaços distintos, a área da ação do espírito e a área das atividades do corpo e da comunidade.
Os documentos mais importantes para este estudo são as Constituições da Companhia de Jesus, os decretos e os diversos diplomas emanados do Concílio de Trento, as Instrução de S. Carlos Borromeu e os Exercícios Espirituais. Do Arquivo Nacional da Torre do Tombo recolhemos da Colecção do Colégio dos Nobres o Livro 154, da Biblioteca Nacional de Portugal o códice 145, e da biblioteca dos Museu Nacional de História Natural e da Ciência o livro do jesuíta António Franco A imagem da Virtude … em Lisboa. Todos os documentos contêm informação sobre a história do noviciado da Cotovia. Destaca-se o manuscrito do ANTT sobre a História da Fundaçam aumento e progresso da casa de provaçam da Companhia de Iesu de Lisboa, Anno de 1597, pelo facto de nunca ter sido transcrito e de conter informação precisa, escrita por contemporâneos, desde a escritura da Quinta da Cotovia até à entrada dos noviços.
Objetivamente, optou-se de forma explicita por um processo de amostragem qualitativa, assumindo a parcialidade e subjetividade dos autores e intervenientes. Na decorrência deste artigo, acredita-se terem ficado claras as razões que estiveram na origem e posterior construção deste espaço único, criado para a formação de jovens que tinham como objetivo final «ir em missão».
Veja o artigo completo em
Mátria Digital, Ano X, Número X, Dezembro 2022 – Novembro 2023
Francisca M. Branco Veiga, Segundo o modo nostro: o edifício do noviciado da Cotovia da Companhia de Jesus, 1619 – 1759, pp. 285-318.
Veja-se, inclusive, VEIGA, Francisca Branco. Noviciado da Cotovia: O Passado dos Museus da Politécnica 1619-1759. Dissertação (Mestrado em Património Cultural) – Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2009.
Santo Inácio de Loyola reuniu em dois documentos toda a legislação jesuítica pela qual a Ordem se manteve una (corpo e mente): as Constituições e os Exercícios Espirituais, completando a primeira os segundos. A primeira cuida da vida em grupo, isto é, organiza a Companhia de Jesus e a vida dos seus membros, os segundos cuidam da parte espiritual e individual dos indivíduos.
Para o noviço da Companhia de Jesus a oração vocal e mental, a correcção dos hábitos, a assimilação dos valores da vida espiritual, assistir às instruções sobre a doutrina cristã e sobre a vida religiosa específica do instituto, fazem parte da sua formação de base.
O noviciado vai estruturar-se, basicamente, à volta de seis experiências/provações que se consideram principais (Const. 64-70) e que constituem “tempos fortes” de aprofundamento e confirmação da vocação:
primeira, um mês de Exercícios Espirituais que dão ao jesuíta a base e estrutura que orientará a sua vida espiritual e vão ser uma verdadeira escola de oração, de identificação com Cristo, de busca e acolhimento da vontade de Deus;
a segunda, será servir em hospitais durante outro mês, onde vão ser chamados a ajudar nos trabalhos, a servir e a conviver com os doentes – uma oportunidade para ter contacto com a realidade do sofrimento, bem como desenvolver a capacidade de abertura, de relação e de solidariedade, vão baixar-se e humilhar-se;
a terceira consiste num mês de peregrinação, sem dinheiro e mendigando, a fim de se habituarem a comer e a dormir mal. É um tempo para descobrir o valor do essencial na vida e deixar amadurecer a confiança na providência divina. O colégio de Coimbra ainda mantém o registo dos Avisos para os peregrinos, que são conselhos de vida espiritual destinados aos peregrinos;
as outras três experiências são, exercer ofícios domésticos para se humilhar, ensinar a doutrina cristã e confessar e predicar, consoante os tempos, os lugares ou a sua própria capacidade.
Trata-se, por tanto, de provar com estas experiências se a atitude e disposição do noviço está de acordo com a vida em missão na Companhia de Jesus além de criar no noviço atitudes correspondentes a um apóstolo evangélico.
No fim do noviciado, passadas todas as provações vão entregar-se, de acordo com as suas aptidões e talentos, às várias ocupações que a Companhia de Jesus lhes proporciona: estudo e lides literárias; serviço doméstico; Ministérios sacerdotais[1].
[Ministérios da Companhia de Jesus (Martins: Via Spiritus 11, 2004)].
O Padre António Franco no seu livro Imagem da Virtude em o Noviciado da Companhia de Jesu na Corte de Lisboa, refere o fim dos noviços da Cotovia:
«…o Padre lhe reprezentou esta caza, declarou o fim, pêra que se fundava, o qual era criaremse nella sugeytos, que fossem estudar aos collegios, e depois se repartissem pellas missoens da India, China, Japaõ, e outras da gentilidade, pêra pregar o Evangelho; donde resultava a Deos grande gloria, e augmento à fe Catholica»[2].
Faz referência às missões como «…o seu dia de allivio…»[3].
[1] Rodrigues, Francisco, História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, Porto : Liv. Apostolado da Imprensa, 1931- , T.I, v. I, p. 506.
[2] FRANCO, António, Imagem da Virtude em o Noviciado da Companhia de Jesu na Corte de Lisboa, Coimbra : no Real Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1717, p.14.
A.N.T.T., Colecção do Colégio dos Nobres, Liv. 187, CAPº 3
Através de um grande esforço de aproximação, do fomento do intercâmbio científico e de uma missionação empenhada, os missionários Portugueses da Companhia de Jesus desempenharam um papel importante, a partir dos finais do século XVI e, em especial, durante o século XVII, na aproximação cultural entre Portugal e a China. Alguns destes missionários da Companhia de Jesus foram nomeados Mandarins pelos Imperadores da China como recompensa pelos seus méritos científicos e pedagógicos, entre eles: Padre Gabriel de Magalhães, Padre Manuel Dias Júnior, Padre Tomás Pereira, Padre João Francisco Cardoso, Padre André Pereira, Padre Domingos Pinheiro, Padre Félix da Rocha, Padre José de Espinha, Padre André Rodrigues. In VEIGA, Francisca M.C. Branco, Astrónomos Portugueses na China, Mestrado em Património Cultural de Matriz Cristã pela Universidade Católica Portuguesa, Cadeira de Museologia, 2006.
Veja-se, inclusive, VEIGA, Francisca Branco. Noviciado da Cotovia: O Passado dos Museus da Politécnica 1619-1759. Dissertação (Mestrado em Património Cultural) – Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2009.
Nas peças cedidas ao Museu Arqueológico do Carmo pela Escola Politécnica[1] encontram-se duas peças do espólio do Noviciado da Cotovia: uma escultura de São Estanislau Kostka (padroeiro dos noviços) e uma de São Luís Gonzaga (padroeiro da juventude).
São Estanislau Kostka e São Luís Gonzaga (Museu Arqueológico do Carmo)
A estatuária religiosa em pedra possui uma função ornamental e identificativa. Trata-se de imaginária integrada em nichos abertos nas fachadas principais dos edifícios religiosos, aludindo ao orago do templo ou ao universo devocional da comunidade religiosa.
Neste caso específico encontramo-nos iconograficamente perante dois santos da Companhia de Jesus.
São Estanislau Kostka (padroeiro dos noviços) surge-nos, iconograficamente, sustentando um menino nos seus braços, levando-nos ao encontro com sua história onde se conta que, estando doente e durante um sonho, viu a Virgem Maria colocar o Menino Jesus em seus braços. Nossa Senhora, na sua aparição, convidou-o a ingressar na Companhia de Jesus.
A indumentária de ambas as esculturas é semelhante, estando ambos vestidos como membros da Companhia de Jesus, isto é, com sobrepeliz[2].
São Luís Gonzaga (padroeiro da juventude)[3] tem como atributos um lírio, um crânio, uma disciplina ou um crucifixo. Um desses objetos, agora desaparecido da sua mão esquerda era por ele dado a contemplar.
Imagens que física e estilisticamente se aproximam uma da outra, onde a desproporção pode igualmente ser observada e sendo visível ao nível da cabeça, parecendo à vista desarmada um restauro quase desastroso. Cultiva-se o gosto pelo gesto e pela exploração do momento determinante da ação. Mas se olharmos estas figuras num plano mais elevado, esta desproporção ameniza-se. Ambas as peças estão sobre uma base do mesmo material mas também ela provocando alguma dinâmica.
[1] Informação recolhida em José Morais Arnaud (coord.); Carla Varela Fernandes (coord.); Vitória Mesquita (coord.), Construindo a Memória: As Colecções do Museu Arqueológico do Carmo, Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, 2005 (a identificação dos santos encontra-se incorreta).
[2] A Companhia de Jesus ordenou o uso da sobrepeliz durante o sermão e nas lições sagradas, daí surgirem estas duas estátuas com este tipo de indumentária.
[3] São Luís Gonzaga é considerado “Patrono da Juventude”. Seu corpo repousa na Igreja de Santo Inácio, em Roma. São Luís Gonzaga escreveu: “Também os príncipes são pó como os pobres: talvez, cinzas mais fedidas”. Após ter recebido a primeira comunhão das mãos de São Carlos Borromeu, decidiu-se pela vida religiosa, entrando para a Companhia de Jesus.
Veja-se, VEIGA, Francisca Branco. Noviciado da Cotovia: O Passado dos Museus da Politécnica 1619-1759. Dissertação (Mestrado em Património Cultural) – Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2009.
Assiste-se a partir de meados do século XVI a um aumento da produção de imagens sacras. O conjunto escultórico do Noviciado da Cotovia, da Companhia de Jesus ( espaços ocupados atualmente pelo Museu Nacional de História Natural e da Ciência, de Lisboa), que chegou aos nossos dias (e de nosso conhecimento), é bem representativo das novas exigências do culto tridentino, que deu especial relevo à imagem de Nossa Senhora sob as variadas invocações, à imagem de Cristo, dos Apóstolos e dos Santos mártires[1].
A escultura da Virgem com o Menino Salvador do Mundo é uma imagem de vulto, em madeira de carvalho setentrional, estofada e policromada, apresentando grande delicadeza na sua postura. Exibe um estofo muito desgastado e alguns vestígios de policromia.
Virgem com o Menino Salvador do Mundo
Data: séc. XVII d.C. Dimensões: – Altura: 130 cm – Largura: 26 cm – Comprimento: 51 cm Materiais: – Madeira Técnicas: – Dourado – Estofado – Policromado – Escultura
A outra escultura de vulto é um S. Paulo, e que apresenta os mesmos problemas na conservação. O estofo encontra-se muito desgastado, em tons vermelho e verde e com alguns vestígios de policromia, provavelmente floral e geométrica, com desenho de linha a dourado. Esta imagem parece ter sido repintada, pelo menos nas zonas sem estofo.
São Paulo
Autor: Desconhecido, trabalho português Datação: séc. XVII d.C. Dimensões: – Altura: 115 cm – Largura: 33 cm – Profundidade: 40 cm Materiais: – Madeira Técnicas: – Dourado – Estofado – Policromado – Escultura
A terceira e última escultura do espólio do Noviciado da Cotovia é um Cristo que estaria na sua origem atado a uma coluna. Escultura em muito mau estado de conservação, com ténues vestígios de pintura. Esta imagem está associada à flagelação de Cristo. A cena da Flagelação, tal como os outros episódios da Paixão é, a partir do século XVI, representada com grande dramatismo, com Cristo atado a uma coluna e ladeada dos verdugos. Quando a cena se encontra despida de todo e qualquer elemento (verdugos, açoites) transforma-se numa imagem de grande devoção, como o caso deste exemplar do Noviciado da Cotovia. Com estas imagens os escultores praticavam a criação do nu, proibido pela igreja pois era considerado indecoroso e desonesto.[2]
Cristo preso à coluna
Autor (es): Desconhecido Datação: séc. XVII d.C. Dimensões: – Altura: 187 cm – Largura: 32 cm – Profundidade: 52 cm Materiais: – Madeira Técnicas: – Dourado – Estofado – Policromado – Escultura
Não existem referências quanto aos seu autores, mas sabe-se o local para o qual a escultura de S. Paulo foi criada dado que em 1759, quando os bens da Companhia de Jesus foram sequestrados, foi elaborado um inventário onde era referido que na sacristia se encontrava «…em cima do caixão três imagens de vulto, uma de S. Pedro, outra de S. Paulo, ambas de cinco palmos com resplendores de folha prateada,…»[3]tendo em atenção que seguiam uma representação “tipo” seguindo as normas tridentinas.
Encontrámos referências bibliográficas a outra imagem escultórica, do século XVIII, pertencente ao Noviciado e que se encontra atualmente na igreja de S. Mamede, vizinha dos Museus da Politécnica, sendo lá colocada após um dos últimos incêndios que houve na antiga escola Politécnica. Esta escultura encontra-se em muito bom estado de conservação. José de Almeida foi o escultor desta imagem de vulto, em madeira policromada e estofada.
Nª Sª da Conceição Autor: José de Almeida Data: séc. XVIII
As esculturas do Noviciado da Cotovia são maneiristas, do início do século XVII, fidelizadas a parâmetros de imaginária sacra portuguesa, tipo esculturas de Gonçalo Rodrigues. Vitor Serrão num artigo publicado na revista Museu afirma que, este escultor trabalhou para uma clientela muito vasta, como por exemplo, a Misericórdia do Porto, os padres jesuítas de Braga e possivelmente para «…os inacianos de Lisboa»[4]. As esculturas maneiristas em madeira estofada e policromada, de que são exemplo as quatro referidas atrás, dão-nos a ideia do tipo de técnica usada neste período, tal como a postura da imagem e os tons e as cores utilizados.
As normas saídas do Concílio de Trento foram adotadas pela Companhia de Jesus a todos os níveis, incluindo as relativas à Invocação e Veneração das Relíquias dos Santos e das Sagradas Imagens. Inácio de Loyola afirmava que: «Louvar os ornamentos e edifícios das igrejas. Do mesmo modo as imagens. Venerá-las segundo o que representam».[a]
[a] INÁCIO DE LOYOLA, Exercícios Espirituais (360).
[1] CAETANO, Joaquim Oliveira; SILVA, Nuno Vassalo e, [e tal.], O púlpito e a imagem : os jesuítas e a arte, p. 25.
[2] DIAS, Pedro, A escultura maneirista portuguesa: subsídio para uma síntese, p. 135.
[3] LINO, Raúl, SILVEIRA, Luís; MARQUES, A. H. de Oliveira, Documentos para a história da arte em Portugal, p. 8.
[4] SERRÃO, Vítor, O escultor maneirista Gonçalo Rodrigues e a sua actividade no Norte de Portugal. Museu, IV série, nº7, 1998, p.148.
Veja-se, VEIGA, Francisca Branco. Noviciado da Cotovia: O Passado dos Museus da Politécnica 1619-1759. Dissertação (Mestrado em Património Cultural) – Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2009.
Excerto do Panorama de Lisboa. In Academia Nacional de Belas Artes
1540 – A 27 de Setembro, o papa Paulo III aprova a criação da Companhia de Jesus, pela bula “Regimini Militantis Ecclesiae”.
Sto. Inácio de Loyola acedeu ao convite do rei português e enviou para Portugal dois dos seus primeiros companheiros: Francisco Xavier e Simão Rodrigues.
1545-1563 – Concílio de Trento – Os Decretos Tridentinos produziram uma genuína reforma da Igreja Católica Romana, e reafirmaram as bases fundamentais do seu dogma.
1546 – É criada a Província Portuguesa da Companhia de Jesus, a primeira província de toda a Ordem no mundo.
– Fernão Telles de Menezes (Governador da Índia e 1º Governador do Algarve, Regedor das Justiças e Provedor da Misericórdia de Lisboa) e sua esposa, D. Maria de Noronha, acordam com os jesuítas serem os fundadores da Casa Do Noviciado.
1597 – Fernão Teles de Menezes oferece de dote à C. J. 20. 000 Cruzados (mais de 100.000 contos de hoje).
1598 – Celebra-se a dedicação da Casa a Nossa Senhora da Assunção (18 de Dezembro).
1603 – Lançamento da 1ª pedra para a construção do edifício (23 de Abril).
1605 – Morte de Fernão Telles de Menezes (26 de Novembro).
1607 – O arquitecto real Baltazar Álvares passa a dirigir a construção da obra.
1613 – Lourenço Lombardo, flamengo natural de Anvers, 2º financiador da Casa do Noviciado, dota a Casa com 30.000 cruzados (mais de 150.000 mil contos).
1616 – Foi feita a 1ª missa na Igreja do Noviciado (1 de Novembro).
Transladação dos ossos do fundador Fernão Telles de S. Roque para a igreja da Cotovia (9 de Novembro).
1619 – Inauguração do edifício do noviciado do Monte Olivete.
1634 – Morre Lourenço Lombardo. Foi sepultado na Sacristia em campa rasa com epitáfio.
1694 – Incêndio na Casa do Noviciado da Cotovia
1705 – É criado o Noviciado de Arroios (Lisboa), para as missões da Índia, dedicado a S. Francisco Xavier, e do qual aceitou ser fundadora D. Catarina rainha de Inglaterra.
1755 – Terramoto em Lisboa afecta parte do edifício.
1758 – Os jesuítas são suspensos do exercício de confessar e pregar (Junho).
1759 – Sai o alvará de sequestro dos seus bens (Janeiro).
São reclusos e com guarda à porta (Fevereiro).
São proscritos e banidos do reino (3 de Setembro).
Noviciado da Cotovia foi confiscado para a Fazenda Real.
1773 – O Papa Clemente XIV, pressionado pelas cortes portuguesa e bourbónicas, promulga a 21 de Julho, o breve “Dominus ac Redemptor”, que decretava a extinção da Companhia de Jesus no mundo inteiro.
Foram 143 anos de existência e de prestação de serviços na formação missionária dos Padres da Companhia neste edifício do Monte Olivete.
1761 – Decreto-lei de 7 de Março institui o Colégio dos Nobres
1837 – Decreto-lei de 4 de Janeiro abole o Colégio dos Nobres
Decreto-Lei de 21 de Janeiro é criada a Escola Politécnica
1843 – Novo incêndio na agora Escola Politécnica
1911 – Pólo da Universidade de Lisboa: Faculdade de Ciências
1978 – Novo incêndio no edifício do antigo Noviciado.
Atualmente – Alberga dois Museus de referência em Portugal e no estrangeiro, o Museu da Ciência e o Museu de História Natural, e o Jardim Botânico de Lisboa, jardim científico, projetado em meados do século XIX para complemento do ensino e investigação da botânica na Escola Politécnica.
In VEIGA, Francisca Branco. Noviciado da Cotovia: O Passado dos Museus da Politécnica 1619-1759. Dissertação (Mestrado em Património Cultural) – Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2009.